Palavras contra o ditador


Erdogan prende jornalistas, fecha jornais, silencia rádios e canais de televisão, para o carrasco são todos culpados do crime  de palavra dada. Contra a ameaça, há que armar a palavra


Uma imagem vale mais que mil palavras. Não sou dessa opinião.

A imagem aprisiona as palavras, fecha-as sobre si mesmas. Cristaliza-as e suspende a imaginação, que é o ingrediente das melhores das palavras.

Mas libertas, multiplicam-se até ao infinito reconhecido, até ao fundo do ser e do saber que são duas coisas gémeas. Vão para além do entendimento, ao sítio onde os lerdos e alucinados têm palavras acoitadas.     

A imagem é a reconstrução representada, soletrada e desenhada por nós. A imagem é aquilo que a minha palavra quiser.

A palavra é nome feminino, como luz. Tem uma unidade que faz sentido, e que nos dá som à voz, por isso quando queremos dar voz aos que a não têm damos-lhe a palavra liberdade que é feminina também.

Na escrita,  dizem os entendidos que é delimitada por espaços brancos, esquecem que é aí que se guardam todas as palavras à espera de vez.

Toda a imagem resulta da palavra aprendida. Um cego vê com a palavra, tal como a criança que aprende a ler para dar sentido ao que pode ver. 

Para mim, a palavra zombeteira, esperta como um alho, a dar peito ao enjeitado, a voar no vento sem medo do censor nem do jumento, para mim, a palavra é que cria mil imagens, as que cada cabeça livre quiser. 

O ditador Erdogan bem pode tentar fechar Istambul, alterar o curso do Bósforo, convidar a morte para ensombrar os bazares, que nunca poderá controlar as palavras sussurradas em sopros de resistência, vento ardente de clandestino, senha de esperança.

Erdogan declarou as palavras suas inimigas. Quere-as presas, medrosas e domesticadas, só tolera o eco do seu uivo. Erdogan prende jornalistas, fecha jornais, silencia rádios e canais de televisão, para o carrasco são todos culpados do crime de palavra dada. 

Por isso, contra a ameaça, por solidariedade e princípio, há que armar a palavra. Utilizá-la com brio, com indiferença, com ira, com vontade, com ambição, pensando noutra coisa. A palavra como se fosse pão. Amassar a palavra nos dias frios e nos dias de verão, com sol, com humidade, com chuva gelada.

Há que escrever sem vontade de escrever contra a corrente.

Há que moldar a palavra com as mãos, com a ponta dos dedos, com os braços, com os ombros, com força e com sensibilidade. Há que amassar o verbo com rancor, com tristeza, com recordações, com o coração feito em pedaços, com os mortos. Há que escrever pensando no que se vai fazer depois. Há que desenhar a letra como se não se fosse fazer nada, nunca mais, para sempre, depois.

Há que crescer a palavra com farinha, com água, com sal, com levedura, com manteiga, com sésamo com papoilas. Há que untar a palavra sagrada.

Há que dar palavra com coragem, com plano, com improvisação, com incertezas. Com a certeza de que se vai falhar. Com a certeza de que se vai sair bem. Com pânico de não se o poder fazer nunca mais, que as palavras se possam queimar, que saiam cruas, que ninguém goste. Há que amassar, escrever todas as semanas, de todos os meses, de todos os anos, sem pensar que se terá que escrever todas as semanas de todos os meses, de todos os anos, há que unir as palavras como se fosse a primeira vez.

Há que misturar palavras como beijos antes de partir de viagem, e no regresso, e durante a viagem há que pensar em reescrever a palavra, quando se volte a casa. Há que juntar o chumbo das letras sem humildade, com empenho, com ódio, com desprezo, com ferocidade, com tesão. 

Há palavras que ressuscitam povos e despertam os homens adormecidos no fundo dos vulcões. Como se tudo estivesse prestes a acabar, no limite. Revolucionários a inventar outras palavras. Como tudo estivesse prestes a começar. Há que escrever para viver, para que os outros vivam, porque se vive, para seguir vivendo. Palavras de comer. Palavras que matam a besta e rasgam o selo. 

Façamos o que tem que se fazer. Escrever. Amassar o pão. Não há diferença.

 

 

 


Palavras contra o ditador


Erdogan prende jornalistas, fecha jornais, silencia rádios e canais de televisão, para o carrasco são todos culpados do crime  de palavra dada. Contra a ameaça, há que armar a palavra


Uma imagem vale mais que mil palavras. Não sou dessa opinião.

A imagem aprisiona as palavras, fecha-as sobre si mesmas. Cristaliza-as e suspende a imaginação, que é o ingrediente das melhores das palavras.

Mas libertas, multiplicam-se até ao infinito reconhecido, até ao fundo do ser e do saber que são duas coisas gémeas. Vão para além do entendimento, ao sítio onde os lerdos e alucinados têm palavras acoitadas.     

A imagem é a reconstrução representada, soletrada e desenhada por nós. A imagem é aquilo que a minha palavra quiser.

A palavra é nome feminino, como luz. Tem uma unidade que faz sentido, e que nos dá som à voz, por isso quando queremos dar voz aos que a não têm damos-lhe a palavra liberdade que é feminina também.

Na escrita,  dizem os entendidos que é delimitada por espaços brancos, esquecem que é aí que se guardam todas as palavras à espera de vez.

Toda a imagem resulta da palavra aprendida. Um cego vê com a palavra, tal como a criança que aprende a ler para dar sentido ao que pode ver. 

Para mim, a palavra zombeteira, esperta como um alho, a dar peito ao enjeitado, a voar no vento sem medo do censor nem do jumento, para mim, a palavra é que cria mil imagens, as que cada cabeça livre quiser. 

O ditador Erdogan bem pode tentar fechar Istambul, alterar o curso do Bósforo, convidar a morte para ensombrar os bazares, que nunca poderá controlar as palavras sussurradas em sopros de resistência, vento ardente de clandestino, senha de esperança.

Erdogan declarou as palavras suas inimigas. Quere-as presas, medrosas e domesticadas, só tolera o eco do seu uivo. Erdogan prende jornalistas, fecha jornais, silencia rádios e canais de televisão, para o carrasco são todos culpados do crime de palavra dada. 

Por isso, contra a ameaça, por solidariedade e princípio, há que armar a palavra. Utilizá-la com brio, com indiferença, com ira, com vontade, com ambição, pensando noutra coisa. A palavra como se fosse pão. Amassar a palavra nos dias frios e nos dias de verão, com sol, com humidade, com chuva gelada.

Há que escrever sem vontade de escrever contra a corrente.

Há que moldar a palavra com as mãos, com a ponta dos dedos, com os braços, com os ombros, com força e com sensibilidade. Há que amassar o verbo com rancor, com tristeza, com recordações, com o coração feito em pedaços, com os mortos. Há que escrever pensando no que se vai fazer depois. Há que desenhar a letra como se não se fosse fazer nada, nunca mais, para sempre, depois.

Há que crescer a palavra com farinha, com água, com sal, com levedura, com manteiga, com sésamo com papoilas. Há que untar a palavra sagrada.

Há que dar palavra com coragem, com plano, com improvisação, com incertezas. Com a certeza de que se vai falhar. Com a certeza de que se vai sair bem. Com pânico de não se o poder fazer nunca mais, que as palavras se possam queimar, que saiam cruas, que ninguém goste. Há que amassar, escrever todas as semanas, de todos os meses, de todos os anos, sem pensar que se terá que escrever todas as semanas de todos os meses, de todos os anos, há que unir as palavras como se fosse a primeira vez.

Há que misturar palavras como beijos antes de partir de viagem, e no regresso, e durante a viagem há que pensar em reescrever a palavra, quando se volte a casa. Há que juntar o chumbo das letras sem humildade, com empenho, com ódio, com desprezo, com ferocidade, com tesão. 

Há palavras que ressuscitam povos e despertam os homens adormecidos no fundo dos vulcões. Como se tudo estivesse prestes a acabar, no limite. Revolucionários a inventar outras palavras. Como tudo estivesse prestes a começar. Há que escrever para viver, para que os outros vivam, porque se vive, para seguir vivendo. Palavras de comer. Palavras que matam a besta e rasgam o selo. 

Façamos o que tem que se fazer. Escrever. Amassar o pão. Não há diferença.