Walk & Talk. Um grande abraço mesmo

Walk & Talk. Um grande abraço mesmo


Aos Açores, à arte, pública e dentro de portas, ao que a terra dá e ao que ela pede — e daí os novos caminhos que começa a trilhar este festival que se faz há seis anos em São Miguel


Hotel Monte Palace, Lagoa das Sete Cidades. Javier de Riba já cá não está, deixou só o aviso — “Olá. Nós Estamos a trabalhar numa instalação artística” — e a indicação para uma conta de Instagram: “follow -> @javierderiba”. Quando chegou àquele hotel abandonado junto ao miradouro da Vista do Rei, local de peregrinação de todo o turista em São Miguel, Javier deixou muita gente confusa. Era preciso limpar o chão, o hotel de luxo com vista para a lagoa metade verde, metade azul construído no final da década de 80 e que faliu ao cabo de ano e meio ainda teve segurança, cães de fila, durante muito tempo, mas chegou o dia em que o dinheiro faltou até para isso, em 2011, e começou a ser saqueado. Há vários verões que o Monte Palace é ele atração turística também, pela ruína, musgo nas alcatifas, nem janelas nem cobertura, que até a grande clarabóia levaram. 

E Javier, com a ajuda de Maria Lopéz, parceira no coletivo Reskate, e de dois voluntários, limpava e limpava. “Vão recuperar isto?”, perguntavam-lhes. “Foram quatro dias para limpar, dois para pintar”, diz ela, “e tínhamos que pintar depressa, porque depois vinha a chuva”, que a cobertura que montaram não era suficiente para travar. A cada dia limpavam outra vez, secavam o chão da água infiltrada, o tempo em São Miguel é sempre uma incógnita, ignorar a aplicação da metereologia do iPhone é mesmo o mais precioso conselho para quem chega à ilha do Continente pela primeira vez. 

“Foi muito duro porque não havia teto e quando chovia, chovia dentro”, conta Javier enquanto pinta com Maria uma dança de doninhas no centro de Ponta Delgada, aqui já assinando em conjunto, como Reskate. “Já foste ver o tapete?” É um enorme tapete pintado em stencil com um padrão de azulejos em tons de azul a lembrar um chão típico de Barcelona, de onde vêm. Javier pinta-os por toda a parte, sempre em edifícios abandonados, uma camada de tinta que muda um edifício inteiro. E a obra, a que chamou “Isatis Tinctoria”, tornou-se viral nas redes sociais. Ele não quer voltar tão cedo, o problema das imperfeições que só o artista nota. “É efémero”, diz-lhe ela. “Tens que aceitar isso.”

Santa Clara. Nuno Pimenta limpa o terreno em volta dos três bancos triangulares em betão acabados de plantar ali, junto ao mar, um virado para fora, para o mar, outro para dentro, para a freguesia, outro para o farol. Santa Clara é a freguesia — a gente daqui da ilha orienta-se e organiza-se assim, a falar em freguesias — que fica no fim de Ponta Delgada, junto ao aeroporto, e foi neste lugar de nada que o arquiteto do Porto quis deixar a sua obra, meia efémera, meia para sempre, porque por cima do que é a robustez destes três grandes blocos triangulares de betão há de haver dois miradouros em madeira pensados para poderem ser removidos durante o inverno, não vá o mar levá-los — mesmo ao lado, o resto de já apenas um dos bonecos de Mark Jenkins sentados nos tetrapods que defendem a terra do mar a lembrar-nos isso mesmo — um voltado para o porto de Ponta Delgada, que foi esta freguesia que construiu, outro para o outro lado, que Nuno diz ser a direção da Europa. “Tem a ver com a questão da expansão, a ideia sempre presente do Além Mar, da Boa Viagem, são os nomes do tabaco daqui”, explica. “Eles estão aqui sempre a pensar em sair.”

Nas nossas costas está o Arco 8, bar-galeria que continua a ter de cada um dos lados da entrada os dois rostos que Vhils deixou já na segunda edição do festival, de um lado um pescador, do outro um empresário da ilha. É no Arco 8 que está em exposição o “Portal”, obra de Nuno Paiva apreendida pela polícia marítima na edição do ano passado poucas horas depois de ter sido levada para o mar. Anémona de espelhos sobre a água, portal para outro lado qualquer, e um processo que, depois da apreensão do verão passado, ainda não terminou.

Foi também neste pedaço de terra para onde Nuno Pimenta quer trazer mais gente com os seus bancos-miradouros que hoje já estarão terminados que Miguel Flor foi queimar seis tábuas de criptoméria, madeira que vem desta árvore da terra, dizem que existe aqui e no Japão só. Mostra-nos as fotografias no ecrã da máquina, são as Torres Gémeas a arder depois dos embates dos aviões aquelas tábuas que queimam junto ao mar. É que a criptoméria, além de leve mas resistente não arde, e ainda menos depois de queimada, explica-nos. Miguel Flor é curador das residências de artesanato que o festival começou a fazer há três edições, convidando designers para trabalharem em conjunto com os artesãos locais.

Galeria Walk & Talk, Ponta Delgada. No último dia de festival a oficina onde estiveram a trabalhar nas últimas semanas é transformada em sala de exposição, com as peças que saíram das residências deste ano, fruto da colaboração do designer francês Sam Baron, diretor criativo da Fábrica, laboratório de design da Benetton, o polaco Bartek Mejor, os Pedrita e Rui Vitorino Santos, em colaboração com o senhor João, que trabalha o vime, o senhor Horácio, especialista na arte de trabalhar a madeira em miniaturas e que aceitou o desafio de trabalhar apenas com criptoméria aqui, “madeira difícil para os detalhes por causa do veio”, segundo nos explica enquanto esculpe uma das baleias desenhadas pelos Pedrita, e a dona Idalina, que trabalha com escamas de peixe. 

As tábuas de madeira queimadas estão aqui, agora mais escuras mas intactas, com todas as linhas desenvolvidas pelos designers nesta edição — a linha de casa, as baleias flutuantes e o mini-tear desmontável dos Pedrita, tudo em criptoméria, a linha de cerâmica que Mejor desenvolveu na fábrica Vieira Lagoa, a coleção inspirada nos registos de Santo Cristo, com escamas e as ilustrações de Rui Vitorino Santos, os candeeiros, as floreiras e fruteiras em que Sam Baron juntou o vime com a pedra vulcânica — que, em conjunto com outras peças criadas na edição do ano passado serão em novembro apresentados na Vida Portuguesa, em Lisboa, com a marca que nasceu do festival, a Rara (de residência de artesanato da região dos Açores).

É aqui, no centro de Ponta Delgada o epicentro do festival. Não fica longe o Vernie, lula gigante que Manfred Eccli e Pedro Leitão, os MORADAVAGA, deram à marginal, com tentáculos que se espalham por todo o jardim, ou a dança da doninha dos Reskate, ou os murais de Lorde Mantraste ou de Sarah Mohr, artista alemã vencedora vencedora do open call para novos talentos lançado pelo Walk & Talk para esta edição. Ponta Delgada é a maior cidade dos Açores e é pequena ainda assim. Com o turismo, que começa a sentir-se neste segundo verão pós-abertura do espaço aéreo às low cost, chegaram os tuk-tuk, ouve-se falar mais estrangeiro na rua do que antes, abriram hostels, restaurantes e novos espaços como a Miolo, livraria, galeria e editora montada num rés-do-chão esonso e que recebeu durante o festival a “Culto da Carga”, comissariada pela Oficina do Cego, uma das seis exposições inauguradas na abertura do festival, com uma aposta cada vez maior nas artes plásticas.

Foi na edição passada a primeira grande exposição no piso de cima da Galeria Walk & Talk, “Gente Feliz com Lágrimas”, comissariada pelos artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, que estiveram presentes em quatro edições e regressaram para lançar o primeiro livro editado pelo festival, com título homónimo mas que é muito mais do que um catálogo da exposição. É uma conversa transcrita entre os dois sobre os seus projetos em São Miguel ao longo dos últimos anos, que conta também a história do Walk & Talk. 

Travessa d’Água. Isto ainda é Ponta Delgada, mas é como se fosse outra coisa, é a travessa tornada praça pelo projeto dos Orizzontale, coletivo de arquitetos italianos convidados por Giacomo Mezzadri e Joana Oliveira, arquitetos do Mezzo, co-curadores do circuito de arte pública, para ajudar a dar forma física ao Quarteirão, criado por Vítor Marques, da Miolo, no final do ano passado, para dar uma nova vida a uma zona esquecida de Ponta Delgada, onde se localizam apesar disso vários equipamentos culturais, entre os quais a Galeria Fonseca Macedo, que acolhe até ao outono “Aviatrix”, em que Susana Mendes Silva conta a história de Ruth Elder, americana que nos anos 20 quis ser a primeira mulher a atravessar o Atlântico por ar mas cujo avião, “American Girl”, foi forçado, por uma perda de combustível, a aterrar nos Açores, outra das exposições integradas na programação do Walk & Talk.

Em colaboração com o designer italiano Francesco Zorzi, que criou a identidade gráfica deste novo quarteirão de Ponta Delgada, os Orizzontale construíram, num projeto de arquitetura participativa, duas estruturas em madeira de onde saem bancos, mesas e um miradouro, numa estrutura simples a ponto de poder ser continuada pelos moradores e comerciantes.

“Estamos sempre a perguntar-nos sobre o que fica do Walk & Talk”, repete constantemente Jesse James, fundador e um dos diretores artísticos. As respostas estão por todo o lado, entre o que é duradouro e o que é tão efémero como as projeções dos VJ Suave, vindos de São Paulo para projetar as suas animações enquanto pedalam em triciclos e que encontraram nos Açores uma nova paisagem muito diferente daquela a que estão habituados, a urbana, porque não há nada em comum entre filmar a projeção de uma onça no Minhocão, avenida suspensa em São Paulo que dizem ser o seu “parque de diversões”, e na Lagoa das Empadadas, em São Miguel. “Tivemos que alterar o nosso processo para encontrar um equilíbrio entre a projeção e a luz da natureza.”

Mas nos Açores o tempo é outro, sempre. Diz Zorzi que é “um lugar onde se vem e se pode parar para pensar de outra forma no que se está a fazer”. À sexta edição, este Walk & Talk que se foi reinventando e já é muito mais do que o festival de arte pública que era no princípio e que encheu São Miguel de murais assinados por artistas chegados à ilha de todo o mundo, é um mosaico em que a interpelação direta dos murais que se faziam na rua começou a entrar pela casa dos habitantes, artesãos, tipografias, museus, grupos de teatro, foi para a rua com projetos de arquitetura a darem voz às vontades dos comerciantes e moradores de zonas que procuram revitalizar-se para dar resposta à nova cena cultural que começa a borbulhar.

A prova do que ajudou a construir foi o reconhecimento do governo regional dos Açores, que chegou na semana passada em forma de declaração da utilidade pública da associação Anda & Fala, criada em 2010 por Jesse James e Diana Sousa para a primeira edição do festival. Podemos dizer isto tudo ou citar só Miguel Flor a fechar trailer do documentário da residência de vídeo André Santos e Rita Grazina que há de ficar completo até ao final do ano: “O Walk & Talk é um grande abraço.”