O Quarteirão. E da travessa fez-se praça

O Quarteirão. E da travessa fez-se praça


Numa zona de pouca passagem no centro de Ponta Delgada um grupo de lojas, galerias, ateliês, restaurantes e hostels criou o Quarteirão, a que um coletivo de arquitetos italianos convidado pelo Walk & Talk deu uma nova praça.


“Vamos ter que pagar para entrar aí?” Vitor Marques responde que não, claro que não, é mesmo para se entrar e para ser usado por todos que isto está a ser montado. A pergunta era de uma das moradoras daquela zona no centro de Ponta Delgada, nos Açores, quando ao longo da última semana viu chegarem à Travessa d’ Água um grupo de italianos, cinco arquitetos do coletivo Orizzontale, que foi dando forma a duas grandes estruturas em madeira, uma em cada entrada, portais para aquela travessa há tanto tempo esquecida tornada agora epicentro de uma coisa nova, a que Vítor Marques vem chamando de Quarteirão já há uns meses.

Vítor Marques, vamos às apresentações, é um homem do Porto que chegou a São Miguel há 22 anos para abrir uma loja de design quando isso era coisa em que ainda mal se falava por estas ilhas plantadas no Atlântico, a meio caminho da América. Foi tendo vários projetos, é diretor do Cineclube, e em dezembro abriu a Miolo, livraria, galeria e editora montada num rés-do-chão esonso e que recebeu nas últimas semanas o “Culto da Carga”, uma das exposições da edição deste ano do Walk & Talk, festival de arte pública que termina hoje em São Miguel, comissariada pela Oficina do Cego.

“Quando abrimos a Miolo sentimos a necessidade de criar alguma forma de atrair o público para cima da Rua Machado dos Santos, que é a rua mais comercial do centro de Ponta Delgada”, recorda Vítor sentado num dos bancos integrados nas estruturas que entretanto já estão terminadas. “Sentíamos que essa rua era quase uma fronteira que as pessoas não transpunham, apesar de ser acima dessa rua a zona mais cultural da cidade, onde está o Museu Carlos Machado, a Galeria Fonseca Macedo, a biblioteca, uma série de edifícios e infraestruturas culturais. É uma zona parada, também residencial mas com muitos edifícios em ruína”, acrescenta. 

Começou então a mapear os pontos de interesse ao longo de três ruas e três travessas — galerias, lojas, ateliers, hostels, restaurantes — e a pensar de que forma poderiam em conjunto começar a atrair gente para esta zona esquecida da cidade. “Não só para nós mas para os outros comerciantes que estão a instalar-se aqui”, acrescenta sobre a nova vida de Ponta Delgada, pós-abertura do espaço aéreo. No verão passado a Ryanair e a Easyjet trouxeram muitos turistas portugueses, agora cada vez se ouvem mais línguas estrangeiras por esta que é a mais acessível das ilhas açoreanas. Em conjunto com os responsáveis por outros espaços, Vítor criou uma página no Facebook a que chamou O Quarteirão, que depressa chamou a atenção dos jornais locais e de Jesse James, um dos diretores do Walk & Talk, que nasceu da arte urbana em 2010 mas que nesta sexta edição tem como novos focos a arquitetura e o design, com o apoio à curadoria de Giacomo Mezzadri e Joana Oliveira, do Mezzo, um estúdio e laboratório de arquitetura que trabalha sobretudo entre Itália e Portugal. 

“Ao longo do ano fomos tendo várias conversas sobre em que espaços da cidade seria importante intervir, sobre como fazer uma ligação entre disciplinas tão diferentes, porque a ideia não era que o festival passasse a ter só arquitetura. Os murais continuam a existir, a performance também, a questão é como é que se consegue criar um fio condutor por todas essas áreas com um conteúdo um pouco mais espacial”, diz Joana Oliveira, origens denunciadas logo em início de conversa pelo sotaque micaelense. Quando souberam da existência do Quarteirão foi claro que o interessante seria um projeto de arquitetura participativa, em que a comunidade fosse fundamental. “Ou seja, só existe porque existe esse grupo de pessoas que tem essa vontade e que precisa de ter alguém do outro lado que perceba o que é possível fazer. Que há um budget, um espaço de intervenção que tem que ser percebido, mas que também descodifique as vontades individuais de cada um, porque cada um tem uma expetativa: a galeria quer uma coisa, o restaurante quer outra.” Para fazer o projeto convidaram os Orizzontale, “o coletivo mais conhecido em Itália por este tipo de intervenções”.

Quando aterrámos em São Miguel estavam os arquitetos a deixar a ilha, trabalho feito em apenas uma semana, com a ajuda dos locais, tudo celebrado num arraial quase improvisado que vários dias depois continua a ser assunto. Na oficina do Walk & Talk, onde ao longo das últimas duas semanas trabalharam artesãos e artistas em residência, encontrámos Francesco Zorzi, designer italiano a viver na Holanda que os Mezzo convidaram para uma intervenção visual nas ruas em torno da nova praça comunitária, agora epicentro do Quarteirão, inspiradas nas marcas que nos indicam o caminho certo nas montanhas. “Quando andas nas montanhas e vês estas trilhas, acho que em português se diz trilhas, sabes que estás no caminho certo. Inspirei-me nisso porque aqui as ruas são muito iguais umas às outras, não sabes se estás no Quarteirão ou não”, explica enquanto subimos ao miradouro que nos permite ver a rua de cima.

“Há 20 espaços, entre galerias, tipografias, restaurantes, hostels um atelier de arquitetura, por isso decidi escolher quatro cores e para cada tipo de espaço desenhei um símbolo que é uma combinação entre estas quatro marcas de cores num símbolo que de uma forma muito abstrata está relacionado com o que a loja é. São quatro quadrados parecidos mas sempre diferentes”, pintados em azulejos daqui da terra, claro. 

Descemos, percorremos a travessa, há uns abajures e outros objetos em exposição em cima de um dos bancos, tudo a três euros. “Já puseram aqui coisas a vender”, diz Francesco, que nos deixa depois na Miolo, onde vai buscar o cimento com que vai afixar os azulejos. Encontramos Vítor: “A ideia é mesmo essa, que isto seja para as pessoas daqui.”