A falta de censos e os emigrantes… ou nem por isso


Os emigrantes aproveitam as férias grandes para tratar do cartão de cidadão na conservatória da terra, com a residência dos pais ou avós


O secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro, veio apelar aos emigrantes portugueses para que se inscrevam nos consulados, porque só tal registo permitirá facilitar a identificação e o apoio das autoridades nacionais em caso de “situações dramáticas” como as que recentemente ocorreram em Nice ou em Munique.

Pois é, quase ninguém lhe ligou. Mas deviam.

Porque todos os anos é a mesma coisa. Chegadas as férias grandes, nos meses de julho e, especialmente, agosto, há lugares, aldeias, vilas e até cidades de Portugal que mais do que duplicam o número da sua população residente.

Evidentemente, não me refiro aos principais centros turísticos, como o litoral algarvio ou as ilhas da Madeira e Porto Santo.

Sobretudo nos Açores e nas Beiras – Alta, Baixa e Litoral -, é tempo de os emigrantes espalhados pelo mundo virem à terra.

A Murtosa, onde nasci, no distrito de Aveiro, é um desses exemplos: vêm sobretudo dos Estados Unidos, Canadá e França. O mesmo nos Açores. Onde, ainda no fim de semana passado, só nas Furnas houve, pelo menos, quatro casamentos de lusodescendentes. 

Ora, com o vagar que não têm durante o ano, muitos destes emigrantes aproveitam as férias na sua terra para tratar da papelada. Como a renovação do bilhete de identidade ou, agora, do cartão de cidadão.

Para a esmagadora maioria, é muito mais fácil prescindir de umas horas de um dia de férias em Portugal para dar um salto à conservatória ali ao lado do que, durante o resto do ano, perder um ou mais dias de trabalho à procura do consulado de Portugal algures no centro de uma grande cidade, e distante do verdadeiro domicílio, como Toronto (caso paradigmático) ou Paris.

Hoje, com a informatização das conservatórias e o sistema centralizado e comunicante com as Finanças, Segurança Social, serviços de Estrangeiros e redes das embaixadas e consulados, devia ser fácil fazer o cruzamento de dados. 

Pura ilusão. Tal facilidade de comunicação não existe. E é quase impossível – se não mesmo utópico – saber quem e quantos são os verdadeiramente residentes num determinado concelho, distrito ou país.

Portugal passou de país de emigração na década de 60 do século passado a país de acolhimento de imigrantes, sobretudo brasileiros e dos países de Leste, nos anos 90 do mesmo século.

E de chineses depois, particularmente após a passagem do milénio e da Administração do Território de Macau para a China.

Em Macau, ainda hoje (mais de década e meia volvida sobre a transição) há três jornais diários, uma rádio e uma televisão exclusivamente em português – e, ao que se saiba, a comunidade portuguesa local é muito inferior ao número de compradores do i.

Outro fenómeno muito mais recente, atual, é o crescimento do número de pretendentes da naturalização portuguesa entre a comunidade de sefarditas do Reino Unido. Senão, vejamos: em 2015 contaram-se pelos dedos de uma mão os pedidos de nacionalidade (cinco) registados entre membros daquela comunidade, cuja ligação a Portugal remonta a… 1492 – ou seja, vai para mais de seis séculos. Pois bem, depois do referendo do Brexit, são já às centenas (mais de 300) os sefarditas que descobriram as suas raízes lusófonas e deram entrada com o respetivo requerimento de naturalização. 

Claro que há que desconfiar se estes sefarditas querem mesmo ser portugueses ou, como muitos asiáticos, africanos ou sul-americanos, veem no passaporte ou no cartão de cidadão português apenas uma espécie de bilhete de acesso à União Europeia. Se calhar, nunca puseram nem vão pôr os pés em solo ou mar luso. E muito menos lhes importa quem é o Presidente da República, o primeiro-ministro ou o presidente de uma câmara qualquer no país mais ocidental da Europa.

Acontece que, já no final da primeira década do novo século, e sobretudo com a crise que fez aterrar em Lisboa os senhores da troika, os portugueses voltaram a fazer as malas e a abalar para outras paragens.

Mas, uma vez mais e na sua esmagadora maioria, mantendo a residência por cá e pouco se marimbando para o registo no consulado.

Na aldeia global em que vivemos, podia ser questão menor. Mas não é. Em cenários de crise, torna mais difícil a ação ou reação, como bem alertou José Luís Carneiro. Mas ainda há tudo o resto. A que nem os censos valem. Como os fenómenos de abstenção exacerbada em qualquer ato eleitoral que, recorrentemente, conduzem a debates de circunstância sobre a qualidade da democracia partidária e por aí fora…

O cartão do cidadão também prometeu contribuir em muito para pôr fim a milhares destes casos – e melhorou a situação a olhos vistos.

Mas com práticas como estas, de cidadãos dados como residentes que, de facto, não o são, e muitas outras afins em que a ligação do cidadão ao país verdadeiramente nunca existiu ou passou a ser demasiado distante, é muito mais difícil.

Até porque, em matéria de cidadania e de processo de revalidação do cartão respetivo, a residência é declarada e não precisa de ser comprovada.

É claro que, para o legislador e para os governantes portugueses, estas questões parecem ser menores e não relevam nada ao lado de outras preocupações bem maiores, como seja o caráter sexista da designação do cartão – porque devia ser de cidadania e não do cidadão.

A culpa não é, portanto, dos emigrantes.  Au revoir!

 

 


A falta de censos e os emigrantes… ou nem por isso


Os emigrantes aproveitam as férias grandes para tratar do cartão de cidadão na conservatória da terra, com a residência dos pais ou avós


O secretário de Estado das Comunidades, José Luís Carneiro, veio apelar aos emigrantes portugueses para que se inscrevam nos consulados, porque só tal registo permitirá facilitar a identificação e o apoio das autoridades nacionais em caso de “situações dramáticas” como as que recentemente ocorreram em Nice ou em Munique.

Pois é, quase ninguém lhe ligou. Mas deviam.

Porque todos os anos é a mesma coisa. Chegadas as férias grandes, nos meses de julho e, especialmente, agosto, há lugares, aldeias, vilas e até cidades de Portugal que mais do que duplicam o número da sua população residente.

Evidentemente, não me refiro aos principais centros turísticos, como o litoral algarvio ou as ilhas da Madeira e Porto Santo.

Sobretudo nos Açores e nas Beiras – Alta, Baixa e Litoral -, é tempo de os emigrantes espalhados pelo mundo virem à terra.

A Murtosa, onde nasci, no distrito de Aveiro, é um desses exemplos: vêm sobretudo dos Estados Unidos, Canadá e França. O mesmo nos Açores. Onde, ainda no fim de semana passado, só nas Furnas houve, pelo menos, quatro casamentos de lusodescendentes. 

Ora, com o vagar que não têm durante o ano, muitos destes emigrantes aproveitam as férias na sua terra para tratar da papelada. Como a renovação do bilhete de identidade ou, agora, do cartão de cidadão.

Para a esmagadora maioria, é muito mais fácil prescindir de umas horas de um dia de férias em Portugal para dar um salto à conservatória ali ao lado do que, durante o resto do ano, perder um ou mais dias de trabalho à procura do consulado de Portugal algures no centro de uma grande cidade, e distante do verdadeiro domicílio, como Toronto (caso paradigmático) ou Paris.

Hoje, com a informatização das conservatórias e o sistema centralizado e comunicante com as Finanças, Segurança Social, serviços de Estrangeiros e redes das embaixadas e consulados, devia ser fácil fazer o cruzamento de dados. 

Pura ilusão. Tal facilidade de comunicação não existe. E é quase impossível – se não mesmo utópico – saber quem e quantos são os verdadeiramente residentes num determinado concelho, distrito ou país.

Portugal passou de país de emigração na década de 60 do século passado a país de acolhimento de imigrantes, sobretudo brasileiros e dos países de Leste, nos anos 90 do mesmo século.

E de chineses depois, particularmente após a passagem do milénio e da Administração do Território de Macau para a China.

Em Macau, ainda hoje (mais de década e meia volvida sobre a transição) há três jornais diários, uma rádio e uma televisão exclusivamente em português – e, ao que se saiba, a comunidade portuguesa local é muito inferior ao número de compradores do i.

Outro fenómeno muito mais recente, atual, é o crescimento do número de pretendentes da naturalização portuguesa entre a comunidade de sefarditas do Reino Unido. Senão, vejamos: em 2015 contaram-se pelos dedos de uma mão os pedidos de nacionalidade (cinco) registados entre membros daquela comunidade, cuja ligação a Portugal remonta a… 1492 – ou seja, vai para mais de seis séculos. Pois bem, depois do referendo do Brexit, são já às centenas (mais de 300) os sefarditas que descobriram as suas raízes lusófonas e deram entrada com o respetivo requerimento de naturalização. 

Claro que há que desconfiar se estes sefarditas querem mesmo ser portugueses ou, como muitos asiáticos, africanos ou sul-americanos, veem no passaporte ou no cartão de cidadão português apenas uma espécie de bilhete de acesso à União Europeia. Se calhar, nunca puseram nem vão pôr os pés em solo ou mar luso. E muito menos lhes importa quem é o Presidente da República, o primeiro-ministro ou o presidente de uma câmara qualquer no país mais ocidental da Europa.

Acontece que, já no final da primeira década do novo século, e sobretudo com a crise que fez aterrar em Lisboa os senhores da troika, os portugueses voltaram a fazer as malas e a abalar para outras paragens.

Mas, uma vez mais e na sua esmagadora maioria, mantendo a residência por cá e pouco se marimbando para o registo no consulado.

Na aldeia global em que vivemos, podia ser questão menor. Mas não é. Em cenários de crise, torna mais difícil a ação ou reação, como bem alertou José Luís Carneiro. Mas ainda há tudo o resto. A que nem os censos valem. Como os fenómenos de abstenção exacerbada em qualquer ato eleitoral que, recorrentemente, conduzem a debates de circunstância sobre a qualidade da democracia partidária e por aí fora…

O cartão do cidadão também prometeu contribuir em muito para pôr fim a milhares destes casos – e melhorou a situação a olhos vistos.

Mas com práticas como estas, de cidadãos dados como residentes que, de facto, não o são, e muitas outras afins em que a ligação do cidadão ao país verdadeiramente nunca existiu ou passou a ser demasiado distante, é muito mais difícil.

Até porque, em matéria de cidadania e de processo de revalidação do cartão respetivo, a residência é declarada e não precisa de ser comprovada.

É claro que, para o legislador e para os governantes portugueses, estas questões parecem ser menores e não relevam nada ao lado de outras preocupações bem maiores, como seja o caráter sexista da designação do cartão – porque devia ser de cidadania e não do cidadão.

A culpa não é, portanto, dos emigrantes.  Au revoir!