Os bons morrem primeiro


Esta foi uma frase adquirida. Antes, quando a ouvia, quase desdenhava dela. Achava-a até ridícula mas, depois, passei a repeti-la, a usá-la sem ser em citação, mas já em nome próprio, porque passei a acreditar nela e a defendê-la


Nunca gostei de frases feitas. Fazem-nos acreditar nelas como se fossem verdades absolutas, quase nos tornam burros porque as verdades absolutas impedem que vejamos outras – mas existem frases que, mesmo que não queiramos comprar, assinar por baixo, concordar, não nos permitem fugir para muito longe. São certeiras. Existem frases que quero ter para mim porque me ajudam a definir quando estou, mais do que o habitual, desalinhada.
Esta foi uma frase adquirida. Antes, quando a ouvia, quase desdenhava dela. Achava-a até ridícula mas, depois, passei a repeti-la, a usá-la sem ser em citação, mas já em nome próprio, porque passei a acreditar nela e a defendê-la:

“Os bons morrem primeiro.”

Não suportava esta frase. Cheguei a lutar contra ela. Se os bons morrem primeiro, significa que, se morrer velhinha e com dor nos pés, por ter bailado por este mundo fora, é porque sou má pessoa? Tenho de ser uma cabra para andar aqui mais uns anos? E as pessoas que amo e que já são velhas, não fazem parte dos bons? 

Claro que esta frase era absurda. Como todas as frases que generalizam. Claro que esta frase era absurda e não fazia sentido, até que os meus bons começaram a morrer primeiro. Continuei a não querer morrer nova nem a achar os vivos com almas menos bonitas, mas comecei a render-me à evidência de que as pessoas incríveis morrem cedo demais. E depois comecei a perceber. Os nossos são sempre os melhores e os nossos morrem sempre cedo demais. Morrem como se fossem os primeiros – os bons morrem primeiro.

Lembro-me da minha avó. Morreu com 90 anos. E hoje, quando falo dela e da sua pele de bebé e daquele humor único e delicioso, lamento sempre que não a tenham conhecido e, para mim, morreu cedo. Talvez o tempo dela não desse para estender mais, talvez não pudesse viver mais 90 anos mas, se os vivesse, continuaria a achar que tinha morrido cedo demais. Porque os bons morrem sempre primeiro. Porque haveria sempre alguém que deveria conhecer a minha avó Beatriz – e até o nome dela era um nome de princesa, daquelas que são sempre novas e eternas.

E depois vi os meus bons, aqueles ainda tão jovens, ainda tão longe dos seus 90 anos, a saírem daqui sem que estivesse previsto. E aí agarrei-me com força à frase “os bons morrem primeiro”, ainda com mais certeza de que ela era absoluta até ao ponto de a detestar. Por que raio têm de morrer os bons primeiro? Essa verdade doía-me. E então, como não tenho personalidade nem tempo nem jeito para odiar, como sou preguiçosa e o peso do ódio é um fardo que não suporto carregar porque me faz transpirar e odeio transpirar, decidi largar essa frase e agarrar-me a outra. Mais leve, mais bonita, que gosto de dizer, que gosto de sentir, que gosto de acreditar nela. Achei que outra frase me coubesse e me aliviasse:

“Morrem primeiro os que já aprenderam tudo o que tinham para aprender aqui.”

Esta frase passou a saber-me bem. Sinto os meus “bons que morrem primeiro” sábios e dignos de todas as homenagens, e não fico triste se isso não me representar. Porque não me importo que ainda tenha muito que aprender, porque acho mesmo que ainda estou longe de saber alguma coisa. Faz sentido. Morrem primeiro os que já sabiam o que tinham a saber.

Acho que sei porque cedo a frases feitas, porque as tenho mesmo que isso signifique que estou apenas a pensar naquilo em que alguém já pensou: ter no bolso frases feitas para ir buscar em momentos de aflição é a única forma de encontrar uma definição para aquilo que ainda não consigo entender. É a única forma de aceitar aquilo que é tão difícil de aceitar. É a única forma de caber em conceitos que flutuam nesta sociedade onde também vivo, mesmo que muitas vezes me pareça que não sei cá viver.

Morrem primeiro os que já aprenderam tudo o que tinham para aprender aqui, digo a mim mesma vezes sem conta e, às vezes, até antes de adormecer. E fico mais calma, mais sossegada, faço as pazes outra vez com o mundo e finjo que entendo porque foram eles primeiro. E sinto-me mais alinhada outra vez.

Terei sempre uma frase feita comigo. Nunca se sabe quando poderei precisar dela. 

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Escreve à quinta-feira


Os bons morrem primeiro


Esta foi uma frase adquirida. Antes, quando a ouvia, quase desdenhava dela. Achava-a até ridícula mas, depois, passei a repeti-la, a usá-la sem ser em citação, mas já em nome próprio, porque passei a acreditar nela e a defendê-la


Nunca gostei de frases feitas. Fazem-nos acreditar nelas como se fossem verdades absolutas, quase nos tornam burros porque as verdades absolutas impedem que vejamos outras – mas existem frases que, mesmo que não queiramos comprar, assinar por baixo, concordar, não nos permitem fugir para muito longe. São certeiras. Existem frases que quero ter para mim porque me ajudam a definir quando estou, mais do que o habitual, desalinhada.
Esta foi uma frase adquirida. Antes, quando a ouvia, quase desdenhava dela. Achava-a até ridícula mas, depois, passei a repeti-la, a usá-la sem ser em citação, mas já em nome próprio, porque passei a acreditar nela e a defendê-la:

“Os bons morrem primeiro.”

Não suportava esta frase. Cheguei a lutar contra ela. Se os bons morrem primeiro, significa que, se morrer velhinha e com dor nos pés, por ter bailado por este mundo fora, é porque sou má pessoa? Tenho de ser uma cabra para andar aqui mais uns anos? E as pessoas que amo e que já são velhas, não fazem parte dos bons? 

Claro que esta frase era absurda. Como todas as frases que generalizam. Claro que esta frase era absurda e não fazia sentido, até que os meus bons começaram a morrer primeiro. Continuei a não querer morrer nova nem a achar os vivos com almas menos bonitas, mas comecei a render-me à evidência de que as pessoas incríveis morrem cedo demais. E depois comecei a perceber. Os nossos são sempre os melhores e os nossos morrem sempre cedo demais. Morrem como se fossem os primeiros – os bons morrem primeiro.

Lembro-me da minha avó. Morreu com 90 anos. E hoje, quando falo dela e da sua pele de bebé e daquele humor único e delicioso, lamento sempre que não a tenham conhecido e, para mim, morreu cedo. Talvez o tempo dela não desse para estender mais, talvez não pudesse viver mais 90 anos mas, se os vivesse, continuaria a achar que tinha morrido cedo demais. Porque os bons morrem sempre primeiro. Porque haveria sempre alguém que deveria conhecer a minha avó Beatriz – e até o nome dela era um nome de princesa, daquelas que são sempre novas e eternas.

E depois vi os meus bons, aqueles ainda tão jovens, ainda tão longe dos seus 90 anos, a saírem daqui sem que estivesse previsto. E aí agarrei-me com força à frase “os bons morrem primeiro”, ainda com mais certeza de que ela era absoluta até ao ponto de a detestar. Por que raio têm de morrer os bons primeiro? Essa verdade doía-me. E então, como não tenho personalidade nem tempo nem jeito para odiar, como sou preguiçosa e o peso do ódio é um fardo que não suporto carregar porque me faz transpirar e odeio transpirar, decidi largar essa frase e agarrar-me a outra. Mais leve, mais bonita, que gosto de dizer, que gosto de sentir, que gosto de acreditar nela. Achei que outra frase me coubesse e me aliviasse:

“Morrem primeiro os que já aprenderam tudo o que tinham para aprender aqui.”

Esta frase passou a saber-me bem. Sinto os meus “bons que morrem primeiro” sábios e dignos de todas as homenagens, e não fico triste se isso não me representar. Porque não me importo que ainda tenha muito que aprender, porque acho mesmo que ainda estou longe de saber alguma coisa. Faz sentido. Morrem primeiro os que já sabiam o que tinham a saber.

Acho que sei porque cedo a frases feitas, porque as tenho mesmo que isso signifique que estou apenas a pensar naquilo em que alguém já pensou: ter no bolso frases feitas para ir buscar em momentos de aflição é a única forma de encontrar uma definição para aquilo que ainda não consigo entender. É a única forma de aceitar aquilo que é tão difícil de aceitar. É a única forma de caber em conceitos que flutuam nesta sociedade onde também vivo, mesmo que muitas vezes me pareça que não sei cá viver.

Morrem primeiro os que já aprenderam tudo o que tinham para aprender aqui, digo a mim mesma vezes sem conta e, às vezes, até antes de adormecer. E fico mais calma, mais sossegada, faço as pazes outra vez com o mundo e finjo que entendo porque foram eles primeiro. E sinto-me mais alinhada outra vez.

Terei sempre uma frase feita comigo. Nunca se sabe quando poderei precisar dela. 

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