O Tribunal de Contas debruçou-se mais uma vez sobre os cuidados de saúde primários no Serviço Nacional de Saúde e traça uma análise dura sobre a oferta do Estado nesta área. Num relatório conhecido hoje, os auditores concluem que as medidas do anterior governo não foram suficientes para melhorar a cobertura dos portugueses e admitem que a situação pode continuar a piorar.
Um das críticas é dirigida ao despacho que eliminou das listas dos médicos utentes que não contactam com os centros de saúde há três anos. O TdC considera que esse despacho deve ser revisto e que todos os portugueses devem ter um médico atribuído, continuando a ser contactados por esse médico e não apenas administrativamente.
Os auditores consideram que isso não alteraria o trabalho dos médicos, uma vez que as suas listas teriam a indicação de serem utilizadores pouco frequentes, mas manteria obrigações por parte do Estado para com estes potenciais utilizadores de cuidados de saúde, até para efeitos de prevenção.
"O não acompanhamento, preventivo, destes utentes, contribuirá para sobrecarregar os cuidados hospitalares com episódios agudos ou até constituir um incentivo ao recurso às urgências hospitalares como meio de acesso expedito a consultas médicas e a meios complementares de diagóstico e terapêutico que não são disponibilizados atempadamente pelos cuidados primários e que se traduzirão certamente em custos futuros associados, que não têm sido avaliados pelo Ministério da Saúde", avisa o Tribunal de Contas. Os auditores avançam mesmo com uma contraproposta: caso as pessoas optem por não responder aos contactos dos cuidados primários, o Tribunal de Contas recomenda ao governo que pondere a possibilidade de um “agravamento substancial” da taxa moderadora quando estes utentes procurem cuidados hospitalares.
Falha de resposta empurra doentes para o privado
O relatório surge no seguimento das recomendações formuladas no Relatório de Auditoria ao Desempenho de Unidades Funcionais de Cuidados de Saúde Primários, divulgado em 2014. Os relatores alertam que, até ao final do primeiro semestre de 2015, a situação não só não tinha melhorado como tinha agravado. Com o aumento das aposentações, registavam-se menos 71 médicos de família nos cuidados de saúde primários do que em 2013, o ano em que incidiu a primeira análise. Neste novo relatório, os relatores consideram que é premente aumentar a formação de médicos. “A carência de médicos tenderá a agravar-se pelo crescimento acentuado das aposentações previsto para o período 2016-2021, num total de 1.761 aposentações”, alertam os auditores. Além de reforço das contrações, o Tribunal de Contas considera que os médicos devem ser libertados de tarefas administrativas para ter mais tempo para os doentes.
Os auditores referem ainda que a falha de resposta tem estado a empurrar doentes para o privado, alertando que, em 2014, mais de um terço dos utentes inscritos nos cuidados de saúde primários não procuraram consultas no SNS. O relatório salienta que esta percentagem tem aumentado ao mesmo tempo que a adesão a seguros de saúde adicionais ao SNS, que totalizam já 4 milhões de subscrições (tendo em conta seguros privados e subsistemas de saúde).
Cedência a interesses corporativos e congelamento dos prémios nas USF
No extenso relatório, o Tribunal de Contas considera que a existência contínua de utentes sem médico de família resulta da falta de planeamento mas também de um condicionamento relacionado com interesses corporativos. O relatório menciona uma “eventual cedência” a estes interesses, que resultou em numerus clausus restritivos à entrada nos cursos de medicina e condicionamento do acesso à formação pós-graduada.
Esta é uma das notas do relatório que promete gerar mais controvérsia. A Ordem dos Médicos, que não foi ouvida no contraditório, tem alertado que não é possível aumentar a formação pós-graduada pois os serviços já estão no limite das suas capacidades para receber internos.
Outro ponto que também não tem sido consensual alerta para uma situação ilegal que se mantém desde 2014 e ainda não foi resolvida pela tutela: de acordo com a interpretação do TdC, os incentivos financeiros que são pagos aos profissionais que trabalham nas Unidades de Saúde Familiar do tipo B pelo cumprimento de metas são prémios de desempenho e deviam estar congelados. No caso dos médicos, adianta o tribunal, significa um vencimento superior em 80% ao dos restantes colegas nas mesmas funções em centros de saúde convencionais ou USF do tipo A. O tribunal recomenda às administrações regionais de saúde para que suspendam estes pagamentos.