Vamos fazer um jogo. Pode ser?
Vou inventar uma história. Não conheço a personagem e, por isso, talvez nem lhe dê nome – e não, não me estou a inspirar em ninguém em particular. Vou inventar uma história, mas o curioso é que esta história é de alguma forma verdadeira, porque de certeza que cabe em alguém. Mesmo que eu não conheça pessoalmente quem a viva, há de sempre calhar a alguém. E até tinha graça se fosses tu.
Ela sempre desejou ser jornalista. Curiosa, intrometida também. A busca pela verdade fascinava-a, mas agora, com 25 anos, mais se embrenhava na relatividade das coisas e já não sabia se poderia definir uma só verdade para si. Dizia, desatenta e em conversa, sem sentir porque não era tempo para isso, “que a única verdade absoluta era a morte e que, das outras, pouco poderia falar”, e mesmo vivendo uma fase de descrença do seu próprio sonho jornalístico, não queria desiludir os pais, que sempre a acharam única.
Claro que os pais dela eram como todos os outros, que amam sem limites e que acreditam nos filhos mais do que eles próprios, mas estes pais tinham mais do que fé e amor. Sabiam-na especial. Sabiam que a vivacidade dela teria de ser espalhada pelo mundo porque ela não poderia ser só deles. Para que o mundo a conhecesse, estes pais de amor incondicional trabalhavam como se o dia tivesse 72 horas e envelheciam aos pares de anos, porque o trabalho dá vida, mas também afinca as rugas. Mas nunca se queixavam, nunca lamentavam, nunca abrandavam e só lhe pediam uma coisa: segue os teus sonhos e não desistas. E ela cumpria, mesmo quando o fazia descrente.
Cresceu filha única, sem sobressaltos, com colónias de férias pelo meio e tererés no verão, primos aos molhos, abraços de avós que sabiam a açúcar, melhores amigas de sempre que ainda hoje tinha; cresceu com o acne da idade e crises existenciais, com bailaricos e festivais, com tantos risos parvos e lágrimas de quem vive com intensidade, cresceu com as míticas festas da faculdade mas com notas sempre boas, mesmo com as festas da faculdade.
E um dia, a mãe, enquanto limpava o pó da sala, perguntou-lhe do nada, interrompendo-lhe o estudo:
“Ouve lá, quando é que foi a última vez que foste ao médico e fizeste um check- -up geral?”
“Sei lá. Acho que há dois anos. Porque perguntas?”
“Então marca consulta e faz.”
Ela soprou e reclamou de a mãe se lembrar sempre de coisas do nada e ainda insistiu, dizendo que não iria perder uma manhã para aturar esse nada que surgia no meio do pó. Mas a mãe dela barafustou, “nunca fazes o que te peço, e o que é que te custa?” e ela acabou por marcar a consulta, para a calar.
Marcou a consulta num dia qualquer e esperou enfadada na sala de espera, enquanto jogava ao “Quem quer ser milionário?” no telemóvel. Chamaram por ela e nem ouviu à primeira, mas depois lá foi, ainda a soprar porque tinha tanto para fazer. Fez a conversa de circunstância com a médica, disse que se sentia ótima e ainda referiu qualquer coisa sobre a mãe ser “tão chata”. A médica anuiu enquanto lhe sorria, mas pediu que se despisse porque queria fazer a apalpação “só para ver se está tudo bem”. Parou a mão durante mais tempo no seio direito, franziu a testa e pediu mais umas análises, mais uns exames, ainda “só para ver se estava tudo bem”. Ela não gostou e sentiu um arrepio na espinha, mas sem pensar muito nisso, porque nunca poderia estar doente. Sentia-se tão bem, tinha 25 anos, e na família nunca se conheceram doenças que interessasse sequer contar ao médico. Depois perdeu o controlo no tempo e não se lembra bem de tudo o que aconteceu a seguir, de tão rápido que foi. A frase “é só para ver se está tudo bem” reapareceu vezes sem conta na sua mente enquanto contava aos pais, inconsoláveis, que de repente tinha cancro de mama. E a mãe dizia “deveria ter sido eu”, e o pai não falava porque, quando o mundo caiu, ele ficou sem voz.
O jogo do “Milionário” ficou em pausa, o sonho jornalístico também. As prioridades dela mudaram radicalmente, assim como toda a sua rotina, mas algo permaneceu exatamente igual – os pais continuavam a pedir-lhe “segue os teus sonhos e não desistas”. Agora com mais força, agora com mais fé, agora com mais urgência, agora pela sobrevivência.
Os pais não se tinham enganado. Ela cumpriu o que prometeu. E os pais nunca se queixavam, nunca lamentavam, nunca abrandavam, mesmo quando ela estava mais fraca, quando a doença se fazia notar com mais força ou quando a esperança recuava. “Segue os teus sonhos e não desistas.”
Mesmo sem a ilusão do “está tudo bem”, mesmo com as pausas obrigatórias nos planos e projetos, ela continuou a procurar a sua verdade. Não sei se se tornou jornalista ou não, porque acho que se tornou muitas outras coisas.
Mas sei uma coisa: ela cumpriu.