O aluno e o (seu) manual


A intenção do Governo de exigir a devolução dos manuais escolares no final do ano letivo é discriminatória e prejudicial ao processo de aprendizagem


A vitória de Portugal no Europeu de França e os festejos da Nação nos dias seguintes, com uma receção apoteótica aos heróis de Paris, relegaram para segundo plano tudo o resto. É natural.

Mas se ainda não passou e durante anos ainda muito se há de recordar tamanho feito, a verdade é que outras notícias houve que o golo de Éder e o levantar da taça pelo lesionado Cristiano Ronaldo quase apagaram da agenda.

Mais ainda com o horrendo ataque em Nice e o golpe e o contragolpe de Estado na Turquia e, de permeio, a discussão sobre as sanções a Portugal por incumprimento do défice.

Com tudo isto, e porque o próximo ano letivo ainda vem longe, parece ter caído no esquecimento uma importante notícia da penúltima edição do Sol: os manuais oferecidos pelo Estado no início do ano letivo vão ter de ser devolvidos (ou pagos pelos pais dos alunos) no final do ano escolar.

Serve o presente para alertar para a importância da questão e para a necessidade de debate público de um tema fundamental para o processo pedagógico e para a formação das crianças deste país. Antes que o ano comece e já não haja remédio.

Pode pretender reduzir-se a questão ao foro político ou económico, a querelas ideológicas ou partidárias, a diferentes perspetivas em sede de responsabilidade social ou de interesses dos editores livreiros ou do pequeno comércio das livrarias locais, com os dias contados se o Governo for mesmo avante… Que só por si já são demasiado relevantes para se enterrar a cabeça na areia.

Mas há muito mais a discutir por detrás de medidas como as da pretensa gratuitidade e especialmente a da obrigatoriedade de devolução dos manuais.

No meu exame de segunda classe, estando eu concentrado na redação e em fazer a melhor caligrafia possível (porque os meus gatafunhos ninguém os entendia e às vezes até eu tinha dificuldade em decifrá-los), tendo riscado uma palavra que pretendia substituir, fui surpreendido por um tabefe aviado pela professora primária que passeava em revista com os pés bem mais leves do que a mão. Logo seguido da reprimenda justificativa, porque a folha de teste não era para se riscar e se algo tinha escrito que pretendesse eliminar, não podendo apagar, devia somente abrir parêntesis, colocar um leve traço sobre a palavra e fechar parêntesis.

Não escrevi mais nada. Respeitosamente pedi licença, levantei-me e depositei o teste incompleto na secretária da professora, regressando para o meu lugar (entre parêntesis, com a face ruborizada, a dobrar num dos lados). Tive Bom+ e o comentário de que provavelmente teria tido Muito Bom se tivesse concluído a composição. Fiquei chateado. Primeiro porque nunca apanhara de um professor; segundo, porque a dor que sentia não era do estalo, mas de revolta pela injustiça.

Recordei-me desta história mais de 40 anos volvidos, porque o Governo pretende impor aos alunos que vão iniciar a escolaridade obrigatória no próximo mês de setembro a obrigatoriedade de não riscarem os manuais escolares. Porque não são deles. São só emprestados.

O sentimento de posse e propriedade de um livro, seja um manual ou não, é absolutamente essencial para a relação que a pessoa (neste caso, o aluno) cria com a leitura (e o estudo).

Se o livro não é dele, se não o pode riscar, nem estragar com uma folha dobrada, com um sublinhado para destacar o que mais releva, com uma anotação à margem ou em rodapé de uma explicação dada pelo professor na aula… como o pode utilizar e dele verdadeiramente usufruir?

Não pode. Porque, no final das contas, o livro ou manual escolar que o Estado se propõe oferecer tem de ser devolvido intacto e pronto a usar por outrem.

Uma medida anunciada em embrulho de preocupação ou benemerência social, que, porém, se revela com consequências inevitavelmente discriminatórias e, sobretudo, fatais para o incentivo da leitura e o processo de aprendizagem e consolidação de conhecimento.

O futuro são os e-books e as novas tecnologias. Se podemos ter tudo num micro chip de um telemóvel ou de um computador – Magalhães ou de uma marca qualquer – para quê estudar? É como a tabuada, para quê sabê–la se hoje há máquinas de calcular sempre à mão?

Pois, podendo tudo isso ser verdade, que não é, estou é mesmo a ver os miúdos a não pegarem nos livros mas é por terem medo de os estragar.

Sobretudo se os pais não tiverem forma ou meios de os pagar.

E se chegarem ao fim tão direitinhos como no dia em que foram dados, é quase garantido que o desgraçado do aluno muito pouco ou nenhum proveito dele tirou.

Há, obviamente, muito mais argumentos, que não cabem neste modesto artigo, para pôr em causa esta política que parece tão solidária e social e que de tal tem muito pouco ou nada.

Basta questionar como podem os alunos devolver os livros no final do ano letivo, se o seguinte quase sempre começa com a matéria do ano anterior, ainda por acabar.

As férias grandes – demasiado grandes – são a melhor oportunidade para os alunos consolidarem conhecimento. Nem que seja só com uma simples leitura do manual. Ora, convenhamos, quem já não os tem, não pode.

Mas o pior mesmo é imaginar uma criança a pegar no livro e completar a sentença no próprio manual e arriscar-se a levar uma solha do pai ou da mãe que, perante tamanho sacrilégio, faz contas ao que vai ter de desembolsar.

Para esses pais e encarregados de educação com dificuldades económicas, o melhor é o filho tocar o menos possível nos livros, jamais os desfolhar vezes sem fim e em caso algum ter uma caneta à mão ou sequer próxima. Como o conselho da outra: «Ó filho, larga os livros e vai mas é jogar à bola… olha para o Cristiano Ronaldo e para o Éder, a alegria do nosso Portugal».

O aluno e o (seu) manual


A intenção do Governo de exigir a devolução dos manuais escolares no final do ano letivo é discriminatória e prejudicial ao processo de aprendizagem


A vitória de Portugal no Europeu de França e os festejos da Nação nos dias seguintes, com uma receção apoteótica aos heróis de Paris, relegaram para segundo plano tudo o resto. É natural.

Mas se ainda não passou e durante anos ainda muito se há de recordar tamanho feito, a verdade é que outras notícias houve que o golo de Éder e o levantar da taça pelo lesionado Cristiano Ronaldo quase apagaram da agenda.

Mais ainda com o horrendo ataque em Nice e o golpe e o contragolpe de Estado na Turquia e, de permeio, a discussão sobre as sanções a Portugal por incumprimento do défice.

Com tudo isto, e porque o próximo ano letivo ainda vem longe, parece ter caído no esquecimento uma importante notícia da penúltima edição do Sol: os manuais oferecidos pelo Estado no início do ano letivo vão ter de ser devolvidos (ou pagos pelos pais dos alunos) no final do ano escolar.

Serve o presente para alertar para a importância da questão e para a necessidade de debate público de um tema fundamental para o processo pedagógico e para a formação das crianças deste país. Antes que o ano comece e já não haja remédio.

Pode pretender reduzir-se a questão ao foro político ou económico, a querelas ideológicas ou partidárias, a diferentes perspetivas em sede de responsabilidade social ou de interesses dos editores livreiros ou do pequeno comércio das livrarias locais, com os dias contados se o Governo for mesmo avante… Que só por si já são demasiado relevantes para se enterrar a cabeça na areia.

Mas há muito mais a discutir por detrás de medidas como as da pretensa gratuitidade e especialmente a da obrigatoriedade de devolução dos manuais.

No meu exame de segunda classe, estando eu concentrado na redação e em fazer a melhor caligrafia possível (porque os meus gatafunhos ninguém os entendia e às vezes até eu tinha dificuldade em decifrá-los), tendo riscado uma palavra que pretendia substituir, fui surpreendido por um tabefe aviado pela professora primária que passeava em revista com os pés bem mais leves do que a mão. Logo seguido da reprimenda justificativa, porque a folha de teste não era para se riscar e se algo tinha escrito que pretendesse eliminar, não podendo apagar, devia somente abrir parêntesis, colocar um leve traço sobre a palavra e fechar parêntesis.

Não escrevi mais nada. Respeitosamente pedi licença, levantei-me e depositei o teste incompleto na secretária da professora, regressando para o meu lugar (entre parêntesis, com a face ruborizada, a dobrar num dos lados). Tive Bom+ e o comentário de que provavelmente teria tido Muito Bom se tivesse concluído a composição. Fiquei chateado. Primeiro porque nunca apanhara de um professor; segundo, porque a dor que sentia não era do estalo, mas de revolta pela injustiça.

Recordei-me desta história mais de 40 anos volvidos, porque o Governo pretende impor aos alunos que vão iniciar a escolaridade obrigatória no próximo mês de setembro a obrigatoriedade de não riscarem os manuais escolares. Porque não são deles. São só emprestados.

O sentimento de posse e propriedade de um livro, seja um manual ou não, é absolutamente essencial para a relação que a pessoa (neste caso, o aluno) cria com a leitura (e o estudo).

Se o livro não é dele, se não o pode riscar, nem estragar com uma folha dobrada, com um sublinhado para destacar o que mais releva, com uma anotação à margem ou em rodapé de uma explicação dada pelo professor na aula… como o pode utilizar e dele verdadeiramente usufruir?

Não pode. Porque, no final das contas, o livro ou manual escolar que o Estado se propõe oferecer tem de ser devolvido intacto e pronto a usar por outrem.

Uma medida anunciada em embrulho de preocupação ou benemerência social, que, porém, se revela com consequências inevitavelmente discriminatórias e, sobretudo, fatais para o incentivo da leitura e o processo de aprendizagem e consolidação de conhecimento.

O futuro são os e-books e as novas tecnologias. Se podemos ter tudo num micro chip de um telemóvel ou de um computador – Magalhães ou de uma marca qualquer – para quê estudar? É como a tabuada, para quê sabê–la se hoje há máquinas de calcular sempre à mão?

Pois, podendo tudo isso ser verdade, que não é, estou é mesmo a ver os miúdos a não pegarem nos livros mas é por terem medo de os estragar.

Sobretudo se os pais não tiverem forma ou meios de os pagar.

E se chegarem ao fim tão direitinhos como no dia em que foram dados, é quase garantido que o desgraçado do aluno muito pouco ou nenhum proveito dele tirou.

Há, obviamente, muito mais argumentos, que não cabem neste modesto artigo, para pôr em causa esta política que parece tão solidária e social e que de tal tem muito pouco ou nada.

Basta questionar como podem os alunos devolver os livros no final do ano letivo, se o seguinte quase sempre começa com a matéria do ano anterior, ainda por acabar.

As férias grandes – demasiado grandes – são a melhor oportunidade para os alunos consolidarem conhecimento. Nem que seja só com uma simples leitura do manual. Ora, convenhamos, quem já não os tem, não pode.

Mas o pior mesmo é imaginar uma criança a pegar no livro e completar a sentença no próprio manual e arriscar-se a levar uma solha do pai ou da mãe que, perante tamanho sacrilégio, faz contas ao que vai ter de desembolsar.

Para esses pais e encarregados de educação com dificuldades económicas, o melhor é o filho tocar o menos possível nos livros, jamais os desfolhar vezes sem fim e em caso algum ter uma caneta à mão ou sequer próxima. Como o conselho da outra: «Ó filho, larga os livros e vai mas é jogar à bola… olha para o Cristiano Ronaldo e para o Éder, a alegria do nosso Portugal».