Na terça-feira fui até Coimbra para saber se a minha médica precisava de alguma coisa. Ela diz que temos de nos ver por um motivo chamado consulta anual, mas eu acho que o que ela quer é saber se estou mais gorda. Curiosidade de gaja.
Confesso-vos: chegou a mexer comigo o facto de, 13 anos depois, ainda não ter tido alta hospitalar. Claro que não me custa nada ir até Coimbra uma vez por ano, mas chateia-me que não me deixem fechar a porta de vez. Por mais bem resolvida que me sinta, a cada próxima consulta marcada relembram-me que a porta estará para sempre entreaberta. Segundo consta, isto será sempre assim e nunca terei alta. O linfoma que tive (linfoma não-Hodgkin) era de um tipo bastante agressivo – tínhamos, portanto, uma relação disfuncional -, e apenas em cinco dias, o gajo aumentou mais do dobro do tamanho. Sendo assim, tive mesmo de aprender a lidar com a frustração de não me ver livre dessa rotina e fi-lo da única forma que sei: a brincar e ironizar com a situação e a ver o lado positivo da coisa. Decidi que continuar a ser vigiada permite-me ficar descansadinha da minha vida e agora sinto–me uma sortuda por ter a possibilidade de ser analisada, vista e revista (e apalpada, como manda a tradição), pelo menos, uma vez por ano.
Apesar de ter esta preocupação anual, não consigo deixar de ser cabeça-de-vento e também é tradição fazer asneira e esquecer-me ou perder alguma coisa. No dia anterior à consulta, esta alma que vos escreve chegou à conclusão que tinha perdido a receita para fazer as análises, coisa que não teria importância se no ano anterior não tivesse perdido o exame que acabei por não fazer. Ao aperceber-me da asneira, entrei em pânico, imaginei a minha médica a expulsar-me da “Ordem dos Pacientes” por ser uma grande irresponsável e a minha mãe a dar-me na cabeça. Como pessoa adulta que sou, fiz o que me competia fazer para me safar: escrevi uma carta aberta à minha médica no Facebook:
“Carta aberta à minha médica de Hematologia
Cara Dra. Catarina, quero que saiba, antes de mais, que respeito imenso o seu trabalho e, caso importe, a acho muito gira. Sinto uma verdadeira empatia por si e, por mim, sim senhor: É uma médica às direitas. Escrevo-lhe uma carta via facebook por duas razões:
Primeira – Fiz merda outra vez.
Segunda – Se eu confessar a minha asneira à frente de todos, os adultos já não nos ralham. Certo? É assim que funciona, não é? A malta confessa e fica perdoada. Pronto, então aqui vai:
Todos os anos vou aí vê-la. Ou seja, todos os anos passeio-me até Coimbra para a minha consulta de rotina. Até aí tudo bem, que eu tenho sempre voltas a dar e nem perco a viagem. Pois, a questão é que eu estou mesmo noutra. Tive cancro há 13 anos e recuso-me a ter outra vez porque, a mim (acredite), o cabelo curto não me favorece nada. Até aqui, entendidas? Uma vez que o meu caso está lá no passado, não consigo preocupar-me o suficiente para ser responsável, por isso é que no ano passado perdi a credencial do meu exame e não o fiz! Lembra-se? Até passou por graça. Este ano repeti a piada e perdi as análises.
Pronto, está dito. Por favor, não me ralhe nem me deteste. E resolva-me lá isto, que a consulta é amanhã e preciso do seu ‘check’ (para dizer à minha mãe que pode dormir descansada).
Beijinhos. Com medo. Da sua pior paciente, Marine”
Depois da minha confissão pública, chegou o momento da consulta. Estava absolutamente confiante, ela não me iria ralhar. E ah!, eu não teria cancro. Entrei no consultório feliz e contente porque essa é a energia que quero que prevaleça na minha caminhada e porque acredito que, se a médica me vir tão sorridente, não se vai meter a inventar (quem é que seria capaz de dar uma má notícia a uma cachopa bem-disposta?), e estive como estou sempre, com meia nádega de fora da cadeira e sem tirar a mala do ombro para mostrar pressa e despacho Disse sim a tudo como uma menina bem-comportada, respirei fundo e agradeci pelo facto de estar bem, antes mesmo de ela me dizer que estava – acho que, quando temos a certeza de algo, não esperamos que ninguém nos confirme o que já sentimos, por isso é que me senti grata logo que coloquei a mão na maçaneta para entrar no consultório.
A doutora confirmou que continuava saudável, saí do hospital mais depressa que um foguete, mas não me fui embora sem antes olhar para o andar onde fiquei internada. Lembro-me tão bem de ficar a olhar pela janela do sétimo piso e de ter medo de estar a “perder a vida”. Era isso que me assustava. A vida acontecia lá fora e eu achava que ela estava a andar sem mim. Mal sabia que a vida também se fazia ali dentro, que a história se fazia ali dentro, atrás daquela janela.
Antes de me ir embora disse adeus cá de baixo àquela Marine de 13 anos que me olhava pelo vidro. Quis tanto confortá-la.
“Oh, Marine, não tenhas medo. Daqui a 13 anos estarás cá em baixo a sair da tua consulta anual, com saúde e a dizeres adeus ao teu passado. Tu, pequenina, podes ainda não saber, mas tens tanta, tanta vida pela frente. Quem me dera dizer-te que vais ficar bem e que serás tão feliz … mas até acho que já sabes disso.”