Elena Ferrante. A procura de um mundo numa amizade genial

Elena Ferrante. A procura de um mundo numa amizade genial


Com a sua tetralogia napolitana, Elena Ferrante conseguiu uma (auto)biografia total, um momento sublime em que a ficção se mostra capaz de criar a partir da tinta não só um pessoa a crescer, mas todo um país.


Acaba de sair na Relógio d’Água o muito esperado quarto e último volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, o que nos dá a oportunidade de olharmos de novo para a complexa e intrigante estrutura erguida pela misteriosa autora italiana, exactamente como ela pretendeu que a lêssemos.

Como definir esta obra? Um romance de aprendizagem, como o jovem Wilhelm  Meinster de Goethe? Neste caso seria de maturação para a escrita do próprio narrador, também personagem, desde criança, à sombra de Lila, a Amiga, com e contra ela, uma penosa iniciação que implicaria o libertar-se, tornar-se um modelo de si própria, a maturidade. Um romance ainda oitocentista com narrador omnisciente? Uma saga familiar e o retrato de uma sociedade? Quase. Afinal um soap?

Quase tudo isto, mas nada disto inteiramente. Para já,  só poderia ter sido construído sob uma sensibilidade pós pós-moderna, o modelo adoptado encena as hesitações da própria construção romanesca, assume as eventuais incertezas de um só ponto de vista que refaz uma história em comum e que uma ardilosa inteligência deceptiva, nem nostálgica nem metafísica, reordena.  

           

Lila & Lenù

A trave, são as duas amigas:  Lila (Cerullo) – mais corajosa – mais inteligente? –, perspicaz, desprendida, rebelde; mas também opaca, obscura, incompreensível, uma mente que precisa de estar sempre ocupada, como se se tratasse de partículas em ebulição; Lenù – insegura, obediente, mais maçadora, mas capaz de racionalmente se erguer do caos, sair do Bairro e prosseguir paulatinamente uma carreira de sucesso, sacrificando até a proximidade das filhas.

            O entrelaçamento de várias personagens, dez famílias,  um núcleo,  que se reconfigura horizontal e verticalmente ao longo do tempo de cada um e do tempo histórico (sendo o próprio tempo, objecto da narrativa, a sua manipulação) e do espaço, ele também em (trans)mutação por acção do próprio tempo. Tempo e espaço de um Bairro pobre de Nápoles, uma cidade  meio destruída pelos nazis, e pela corrupção imobiliária cega, de um país: a Itália, do pós-guerra até sensivelmente os nossos dias (as duas principais protagonistas nascem em 44, a última referencia é 2007). Contado assim, poderia de facto tratar-se do guião de uma (tele)novela, mas o que não, pode voltar a ver-se.

            O sucesso é espicaçado pela invisibilização da autora. Elena Ferrante é um pseudónimo. Desde 1992, defende ferozmente o direito ao anonimato. As entrevistas são escritas, as perguntas enviadas ao editor por correio electrónico, este reencaminha-as à escritora, que responde pela mesma via e este faz chegar  as respostas ao(s) jornalista(s). Em 2015 dá a sua primeira entrevista presencial, conduzida pelos editores. Publicada no Paris Review, nela se apresentam ideias importantes e actuais sobre a sua decisão em manter-se na sombra, os romances napolitanos  e a teoria literária em geral.

 

O Bairro e o país

             Em primeiro lugar o Bairro, também personagem assim designada. Um bairro pobre, ainda não refeito da Guerra, microcosmo primitivo e violento. Em segundo lugar, Nápoles, onde a autora nasceu. Alargando o círculo, vem Itália. Ferrante atravessa e é atravessada por tudo isto, haverá certamente muito de verdade (auto)biográfica aqui. História e Verdade, relativamente a um pais, a um autor, têm sido aspectos com que a autora é continuamente confrontada. Tudo isso assoma na narrativa enquanto pinceladas de amarelo como diz referindo-se a um comentário de Bergotte, o pintor impressionista, da obra de Proust  olhando o pedacinho de amarelo numa pintura de Vermeer, o ponto isolado, pode ser uma nota à margem diz:  “isso é o modo como eu deveria ter escrito”.

            Se os lugares, os nomes, as variadíssimas situações do livro foram realmente experienciadas pela autora, desde a infância, mesmo sendo ela testemunha ou garante de verdade desse material, e desse mundo,  dessa parcela confiscada  indevidamente ao real e posta ao serviço de outra coisa, a que se chama arte, o que propulsiona a escrita e a ideia que traz não é a verdade desse vivido, o que  propulsiona a escrita, a verdade em literatura é a manipulação da palavra. A verdade é uma questão de linguagem. De energia colocada no disparar da frase. Os livros de EF não são propriamente aqueles em que suspendemos a leitura numa frase que deslumbrados sublinhamos e que retemos por si, não é propriamente apenas a função poética da linguagem, o que paralisa, mas a energia que obriga o leitor a continuar sempre e sempre mais.

            Esta tetralogia, desdobra-se aliás por toda a história de Itália: do Pós Guerra fendida entre o norte e o sul, entre o Italiano e o Dialecto (distinção entre outras, social). Desde referendo, a queda da Monarquia, do fascismo, a República, o pacto então de regime entre democratas cristãos e o PCI, presentes os conflitos sociais, as marcas de distinção e os movimentos operários e estudantis, a crítica à autoridade, o advento do feminismo e da luta das mulheres, das Brigadas Vermelhas, da Máfia a ir ganhando mais e mais poder e terreno, da nova máfia controlando os night clubs, contrabando de tabaco, tráfico de droga. Nos anos 80, emerge um poder de juízes. Alguns assassinados (Giovanni Falcone). Os juízes despedaçam o sistema político tal como ele está. E a Itália, os media e Berlusconi.

            Tudo isto aflora clara ou sub-repticiamente em A Amiga Genial.  Mas não em abstracto. Tem nomes próprios. É a própria particularidade de cada um que iça o pano de fundo e não o inverso. As estórias abraçam a História, ou vice-versa. Alguns exemplos dessa História pessoal vivida: Marcello e Michele Solara encarnam a velha máfia a arrogância mafiosa, o seu poder impiedoso, os seus acólitos disseminados, a cumplicidade fascista contra os operários. A Mãe, Manuela, detém o livro vermelho – objecto símbolo – temido porque é nele que aponta o dinheiro que a gente do Bairro tem em dívida. Achille Carracci, dedica-se ao mercado negro e à usura. Todos serão assassinados. Alguns despedaçados sadicamente.

            Abundam pessoas odiosas como Nino – que tinha assento no parlamento –, ou como Armando Galiani – que adquiria uma certa fama que [não conseguida como médico, nem politólogo], graças à televisão – tinham-se adaptado rapidamente, à nova época (acumula programa no Canal 5, e televisão pública). Quanto a pessoas como Nádia, evidentemente, haviam sido bem aconselhadas e estavam a lavar a consciência com uma torrente de denúncias. Essas, “imagino que tenham continuado a pensar, a exprimir-se, a atacar, a defender-se, repetindo as palavras de ordem que aprenderam nos anos sessenta e setenta”. Guido Airota, figura eminente, professor de Literatura Grega, socialista, sobrenome prestigiado, que abre todas as portas, será envolvido, apesar de parecer estar inocente, é que não havia acção possível exterior à rede. Tentacular o tráfico de influências e favores. Pietro Airota, professor também, marido de Elena, pai das duas primeiras filhas, rígido, protagonista e defensor da autoridade num tempo de caos e rebelião na universidade. Assenta carreira nos EUA, as filhas juntar-se-lhe-ão. Todos eles, e outros, protagonizam etapas históricas. São emblemas de comportamentos que o tempo burila. Ao mesmo tempo, à medida que a escritora narra, observa cirurgicamente, a frio, o perfil de cada um. Até o leitor se sente, muitas vezes posto a nu, descoberto nas suas pequenas e ou grandes infâmias.

            Neste romance quase da aprendizagem, a história do desenvolvimento de um narrador como escritor é o quase que faz toda a diferença, que (inter)fere desde a origem, e é aí, entre, que as coisas ganham velocidade e a escrita arranca. Como uma brecha maligna que impede qualquer completude, qualquer coincidência, estilhaça os contornos do Um. Sempre ao pé da “frincha entre uma coisa normal e outra. Está ali à espera, sempre suspeitei disso (…) os bons sentimentos são frágeis, comigo o amor não resiste (…) depressa abre buracos (…) o querer bem corre juntamente com o querer mal, e eu não consigo, não consigo condensar-me em torno de nenhuma boa vontade. Há sempre um solvente que actua devagar”. O que Lina acaba de dizer aqui, no consultório de ginecologia, pois estava grávida de Enzo com quem desenvolvera, no Bairro, um próspero negócio de computadores, é contíguo ao que lhe acontece, por vezes, e ela chama de “desmarginação”, a perda dos contornos. Em momentos chave, uma coisa perdia os contornos e derramava-se para cima de outra , “era todo um dissolver-se de matérias heterogéneas, um confundir-se e misturar-se”. Sem conseguir dar contornos nítidos às sensações, uma emoção táctil passa a uma visual, uma visual passa a olfactiva. Por isso Lila não podia distrair-se. Desocupar a mente, descontrolar o caos, perder os contornos das coisas que cruzavam o seu espírito. Por isso criava e trabalhava em qualquer coisa. Migrava facilmente de uma coisa a outra. E era sempre a melhor, mas desinteressava-se.

 

A amiga genial?

             Ao começarmos a ler o primeiro volume de Elena Ferrante, lemos o anunciar daquele que Elena Greco vai escrever  e nós começámos a ler, é aliás sempre a sua voz que ouvimos. A amiga tinha desaparecido, o filho telefona-lhe desesperado, procura em vão a mãe, Lila . Ela “queria desaparecer como também apagar toda a vida que deixara para trás. Senti-me deveras irritada. Vamos ver quem vence, desta vez, disse para mim. Liguei o computador e comecei a escrever os pormenores da nossa história, tudo aquilo que me ficara na memória”. Será mesmo Lila a amiga genial. Será afinal Lenù? É que a memória é já literatura. Depois de esta ter publicado, com sucesso, a partir de um acontecimento preciso trágico, o desaparecimento de Tina, filha da amiga, esta nunca mais a atendeu.    

            Para cada uma, a outra é genial, ambas dependem da aceitação e aplauso da outra, temem a desaprovação, omitem, escondem, mas perseguem-se. Cada qual é a amiga genial da outra. Ou, não será Elena (o mesmo nome) Ferrante, a grande arquitecta, a amiga de facto genial?

            Os verbos que movem a narrativa e estruturam a sintaxe são: o ‘aprovar’, o ‘louvar’, o ‘aplaudir’ da genialidade. Uma à outra. Se falha, manter-se-á um fosso, a incompletude em cada uma das amigas, destinadas uma à outra pelo força de atracção diabólica de um íman poderoso, que só o apagamento de uma resolveria. E foi isso que aconteceu. A novela aplaudida, a que Greco escreveu, A Amizade, inspirada no desaparecimento, pior do que a morte, da filha de Lila, tendo prometido que nunca o faria, isso desligou-as de vez.

            Lenù escreve por causa de Lila. Depois da leitura de Mulherzinhas, ambas assentaram em tornar-se escritoras, e ricas. Lila compôs A fada azul (objecto-fantasmático ao longo dos livros), a amiga foi mostrar à professora Oliviero. A professora desdenhou por despeito, pois os pais Cerullo não deixariam a filha prosseguir os estudos. E era Genial. Lenù percebeu isso, louvou e invejou. Assim como posteriormente deitou fora uns cadernos escritos por Lila que, por temer que o marido os lesse, os deu a guardar à amiga, com a promessa de não os ler.  Mas leu. Lenù prosseguiria até se doutorar com uma bolsa da Escola  Normal em Pisa. Saiu do BAIRRO. Lila ficou, atenta ao próximo, concreto, à vizinhança… A primeira traçou uma carreira no exterior, passo a passo, racionalmente, com uma orientação que se foi delineando, uma brilhante inteligência masculina, que sente a lei, não a vizinhança. Mas que acabaria, com o apagamento de Lila, de a conduzir à escrita.

            Algumas recorrências que não se podem deixar de se apontar: a figura do Retorno… a Nápoles, e ainda mais ao BAIRRO, antes de ter esgotado o prazo para escrever um novo livro Elena Greco torna a viver no Bairro, no andar de cima (de Lila). Não será um círculo é uma espiral que repete e difere o que se repete: Nino Sarratore, filho de Donato, casado, que quase enlouqueceu Melina por a ter abandonado. Ora Nino, que  detesta o pai, duplica-o. Nino é um gabarola, simpático e sedutor como Donato, ambicioso, só  que mais perspicaz, maleável a quase tudo menos ao sofrimento, chegou a deputado. Elena que na adolescência detestava o som da mãe da mãe que coxeando se anunciava, depois do nascimento da terceira filha, passou  ela mesma a claudicar levemente de uma perna. A doença da mãe aproximou-a desta, modificou-a. A filha terá o mesmo nome; Immaculata, Imma. Há objectos fetiches: a boneca  mais amada, chamada Tina, que Lila atira para a cave de Dom Achile, por ser má e saber que é, volta um dia ao hotel com vista para o Pó. Tina será o nome da menina desaparecida, a filha de Lina. A partir de certa altura Lila começou a pesquisar obsessivamente a história de Nápoles, caminhando pela cidade, com Imma, conversando sobre o que ia descobrindo. Explorava a cidade, vagueava. Atentava a cada palácio, a cada igreja, edifício ou ruína. Estudava, pesquisava na Biblioteca Nacional. Tudo tinha sido erguido sobre escombros, escondia subterrâneos, tapava dejectos, tudo havia de ruir e ser reconstruído, ali, em cada sítio, voltaria. A alegoria do ciclo, do eterno retorno. Tudo ainda em função de Tina. Por isso não poderia suportar Uma Amizade. Para ela, Tina havia de voltar.

 

Elena Ferrante

História da Menina Perdida. Maturidade – Velhice

A Amiga Genial 4ºvolume

Tradução: Margarida Periquito