Referendos


O Brexit referendário e o reforço do PP em Espanha vão em sentidos opostos nas respostas a dar pelas democracias europeias


Desde os primeiros tempos de faculdade, por intermédio do confronto imediato com o fascinante mundo da concretização jusconstitucional do princípio democrático, que adquiri a convicção de que o referendo seria um mecanismo duvidoso de deliberação popular no âmbito da chamada democracia semidireta. Mesmo com cláusulas de salvaguarda em matéria de quórum eleitoral para a sua vinculatividade, mesmo com apreciações jurídicas que filtrem os seus conteúdos, e ainda que com restrições nas matérias, pareceu-me que – pelo menos na sua vertente nacional – seria sempre algo de tendencialmente perverso e potencialmente divisionista. Por outro lado, mesmo sem resultado impositivo, o referendo fica sempre como uma espécie de recomendação para o poder legislativo e/ou executivo cuja ignorância traz sempre custos a evitar. Outro julgamento tenho para referendos de caráter regional ou local ou institucional, centrados em medidas e opções de gestão e protagonizados pelos atores verdadeiramente interessados em basear uma decisão no suporte popular ou laboral. Nos demais, de banda larga, creio que terminam irremediavelmente em fragmentação sem proveito, aproveitam-se para derivas populistas à margem da questão sob consulta e perdem-se em outras matérias que fazem a agenda política do momento, e acabam por contaminar o juízo dos eleitores. Como parece inevitável, os referendos personalizam-se (como em qualquer eleição política geral) e as personalizações não deviam ser chamadas para a objetivação ambicionada pelos referendos. Tenho, por isso, muitas dúvidas que o referendo seja verdadeira e manifestamente um expediente da democracia participativa: participa-se nem sempre pelas boas razões, pois muitas vezes é compreensível que não se participe com a lógica de pronúncia sobre “questão de relevante interesse nacional”, mas antes com a lógica de plebiscito momentâneo aos políticos, aos governos e às suas oposições. Mesmo que não possa haver nunca temor algum de ouvir o povo, nunca esqueçamos Popper e a relativização da soberania do povo. Nem sempre nem nunca. David Cameron terá percebido agora, tarde demais. Os ingleses, com uma grande participação, poderão compreender ainda mais tarde.

A vitória do Partido Popular, com mais expressão do que se anunciava em Espanha, parece demonstrar que há, em muitos casos, eleições gerais travestidas de referendos, pelo menos para os indecisos e céticos. A pergunta poderia ser: é admissível que a Espanha continue a viver assim? Nem sempre para os indecisos o voto pode ser raiva, indignação e arremesso, sob pena de a confusão e o desnorte se instalarem de vez. E ninguém vive sem o mínimo de estabilidade, responsabilidade e segurança, e com o quanto baste de distância relativamente à demagogia. O retrocesso do Podemos e das ambições de Pablo Iglesias parece, por isso, saído de um outro referendo: é verosímil reformar com radicalismos? Em cima de todas essas questões nacionais está a interrogação presente e transversal sobre o que se pede às instituições democráticas para assegurar desenvolvimento económico, justiça social, emprego sólido e pluralismo cultural. Para essa resposta, o Brexit saído do referendo surge na pior altura. Com anemia na economia, as finanças públicas a titubear, as migrações a crescer, as questiúnculas políticas internas do Reino Unido só vieram dificultar a viabilidade do caminho. Quem mais pede à democracia pode estar a contaminá-la. E o risco é absolutamente impensável.

Professor de Direito da Universidadede Coimbra. Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira

Ricardo Costa

 

Referendos


O Brexit referendário e o reforço do PP em Espanha vão em sentidos opostos nas respostas a dar pelas democracias europeias


Desde os primeiros tempos de faculdade, por intermédio do confronto imediato com o fascinante mundo da concretização jusconstitucional do princípio democrático, que adquiri a convicção de que o referendo seria um mecanismo duvidoso de deliberação popular no âmbito da chamada democracia semidireta. Mesmo com cláusulas de salvaguarda em matéria de quórum eleitoral para a sua vinculatividade, mesmo com apreciações jurídicas que filtrem os seus conteúdos, e ainda que com restrições nas matérias, pareceu-me que – pelo menos na sua vertente nacional – seria sempre algo de tendencialmente perverso e potencialmente divisionista. Por outro lado, mesmo sem resultado impositivo, o referendo fica sempre como uma espécie de recomendação para o poder legislativo e/ou executivo cuja ignorância traz sempre custos a evitar. Outro julgamento tenho para referendos de caráter regional ou local ou institucional, centrados em medidas e opções de gestão e protagonizados pelos atores verdadeiramente interessados em basear uma decisão no suporte popular ou laboral. Nos demais, de banda larga, creio que terminam irremediavelmente em fragmentação sem proveito, aproveitam-se para derivas populistas à margem da questão sob consulta e perdem-se em outras matérias que fazem a agenda política do momento, e acabam por contaminar o juízo dos eleitores. Como parece inevitável, os referendos personalizam-se (como em qualquer eleição política geral) e as personalizações não deviam ser chamadas para a objetivação ambicionada pelos referendos. Tenho, por isso, muitas dúvidas que o referendo seja verdadeira e manifestamente um expediente da democracia participativa: participa-se nem sempre pelas boas razões, pois muitas vezes é compreensível que não se participe com a lógica de pronúncia sobre “questão de relevante interesse nacional”, mas antes com a lógica de plebiscito momentâneo aos políticos, aos governos e às suas oposições. Mesmo que não possa haver nunca temor algum de ouvir o povo, nunca esqueçamos Popper e a relativização da soberania do povo. Nem sempre nem nunca. David Cameron terá percebido agora, tarde demais. Os ingleses, com uma grande participação, poderão compreender ainda mais tarde.

A vitória do Partido Popular, com mais expressão do que se anunciava em Espanha, parece demonstrar que há, em muitos casos, eleições gerais travestidas de referendos, pelo menos para os indecisos e céticos. A pergunta poderia ser: é admissível que a Espanha continue a viver assim? Nem sempre para os indecisos o voto pode ser raiva, indignação e arremesso, sob pena de a confusão e o desnorte se instalarem de vez. E ninguém vive sem o mínimo de estabilidade, responsabilidade e segurança, e com o quanto baste de distância relativamente à demagogia. O retrocesso do Podemos e das ambições de Pablo Iglesias parece, por isso, saído de um outro referendo: é verosímil reformar com radicalismos? Em cima de todas essas questões nacionais está a interrogação presente e transversal sobre o que se pede às instituições democráticas para assegurar desenvolvimento económico, justiça social, emprego sólido e pluralismo cultural. Para essa resposta, o Brexit saído do referendo surge na pior altura. Com anemia na economia, as finanças públicas a titubear, as migrações a crescer, as questiúnculas políticas internas do Reino Unido só vieram dificultar a viabilidade do caminho. Quem mais pede à democracia pode estar a contaminá-la. E o risco é absolutamente impensável.

Professor de Direito da Universidadede Coimbra. Jurisconsulto

Escreve à quinta-feira

Ricardo Costa