Na passada sexta-feira acordei antes de o despertador tocar e peguei no telemóvel para ver as horas. Antes ainda de ter como certo que era cedo demais para sair da cama, vi os resultados do referendo sobre o Brexit. Dezassete milhões de pessoas no país em que acordo todos os dias tinham dito não à União Europeia. E se por um lado não esperava mesmo outro fim, o choque foi ainda grande o suficiente para correr casa fora e ir acordar o meu irmão, outro imigrante indesejado, aos berros: “Brexit! Brexit! Ganhou o Brexit!” A resposta estremunhada foi algo que não cai bem sair impresso.
Desde esse dia que recebo mensagens de amigos ingleses, todas muito idênticas: pedidos de desculpa, longos e encolerizados desabafos e a perene questão sobre o que vou fazer a seguir. A resposta para mim é fácil – vou pedir cidadania – mas, para mim, não é o mais importante.
Não passavam ainda 24 horas desde que os resultados tinham sido anunciados e já as redes sociais se enchiam de histórias macabras sobre homens embriagados a gritar impropérios racistas, panfletos com as palavras “não mais vermes polacos” a serem distribuídos pelas caixas de correio de Cambridge e britânicos de ascendência asiática a serem avisados de que agora, finalmente, tinham de se ir embora.
Porque este é o verdadeiro resultado deste referendo. Não obstante a opinião de cada um sobre os defeitos e as qualidades da UE, o referendo sobre o Brexit foi conduzido da forma mais isolacionista e, consequentemente, xenófoba possível. A maioria dada ao “out”, dentro do contexto que levou ao referendo, nunca poderia ter sido uma vitória para a esquerda eurocética ou mesmo para aqueles que, a meu ver corretamente, têm objeções à estrutura não democrática da Comissão Europeia ou às pressões de estilo mafioso feitas pela UE contra economias mais fracas em África ou na América Latina, dentro dos acordos de parceria económica. Este não foi um referendo por um Reino Unido mais democrático, por mais soberania para aqueles que têm menos voz no panorama político nacional. Não foi um referendo a favor daqueles que têm sofrido mais com as medidas de austeridade pan-europeias. O nó górdio neoliberal e bajulador das elites financeiras que é a União Europeia continua intacto.
As preocupações válidas da classe trabalhadora britânica sobre a falta de emprego, sobre a crise habitacional, sobre o empobrecimento das famílias e as reduções nas pensões foram exploradas neste referendo e usadas como munição para a causa populista de extrema-direita. Em vez de se usar a oportunidade para falar de alguns dos maiores problemas sociais nacionais, a classe política britânica deixou que a xenofobia e o racismo dominassem as campanhas pré-referendo e que o resultado fosse um reflexo das mesmas.
Tenho medo. É verdade que sim. Tenho medo do que se avizinha e tenho medo do que já cá está. Tanto o Partido Trabalhista como os conservadores se dividiram durante a campanha eleitoral e estão agora em acérrimas guerras civis sem fim à vista. O primeiro-ministro, David Cameron, demitiu-se lavando as mãos do processo político mais complexo na história do país desde, quem sabe, as revoltas que levaram ao assinar da Magna Carta. Por seu lado Jeremy Corbyn, líder do Labour, tem agora de lidar com um sem-fim de demissões dentro do governo-sombra. Estabilidade política e económica não está prevista para os próximos tempos.
Nas ruas também tenho medo. Algo que nunca senti, mesmo nesta metrópole sodomita que é Londres. Mas tenho-o hoje quando vejo as notícias. Quando dois supostos imigrantes europeus, pai e filho, são espancados e deixados inconscientes numa rua não longe de onde trabalho. O trabalho de um “Englishman” disseram – um homem inglês. Tenho medo quando ainda nem um dia se passara desde o voto “out” e uma amiga, uma mulher pequenina, de pele escura, nascida e criada num bairro londrino, é confrontada com um valentão que lhe berra, a dedos de distância, “Brexit!” Tenho medo quando um amigo tem que intervir num ataque verbal a uma mulher negra, que chorava – de medo e de alívio, quando salva. Tive medo quando o meu irmão se pôs a caminho de casa sozinho, pelas ruas de Londres, numa madrugada deste fim de semana.
Para já, e talvez no fundo, no fundo, o resultado oficial deste referendo não me interessa. Dentro ou fora da UE, o Reino Unido continua a ser a minha segunda casa, não serão mais controlos nas fronteiras que farão a diferença. Mas a minha segunda casa não está em paz. Está mesmo em estado do sítio. E todos os que aqui vivem podem sair feridos – “ou até bem mais deitados” – deste motim chamado Brexit.