Primeiro foi a polémica da falta de nomeados negros aos Óscares, uma luta encabeçada por Will Smith e pela sua mulher, Jada Pinkett-Smith. Ainda antes da cerimónia mais concorrida de Hollywood, e quando a discussão racial parecia marcar a agenda, chegou o single “Formation”, de Beyoncé, uma poderosa afirmação do black power, que colocou a cantora na posição de porta-estandarte da luta pela igualdade de direitos dos negros. Não contente com isto, logo de seguida Beyoncé apresentou o álbum completo, “Lemonade”, que apesar de ter sido mais comentado por abordar a até então alegada traição do marido, Jay Z, está também repleto de mensagens antirracismo e pró-afirmação dos negros. Mais recentemente foi Alicia Keys que veio a público gritar contra a tirania da perfeição e todos aqueles que se ofendem com a sua cabeleira e os seus traços afro. Agora foi o discurso de Jesse Williams nos BET Awards, prémios criados em 2001 pela Black Entertainment Television (BET) com o objetivo de distinguir artistas afro-americanos nas áreas da música, representação e desporto, a inflamar a plateia. E a correr mundo, afirmando-se já como um lema para o movimento ativista Black Lives Matter.
O que parece certo é que já não há cerimónias de prémios que distingam o talento. Isto é, já não há cerimónias de prémios onde se fale apenas de talento. Invariavelmente – e hoje mais que nunca – estes momentos servem de palco a discursos cada vez mais politizados, seja por questões ambientais ou pelos direitos das mulheres ou pelos direitos dos negros.
Uma noite sem censura Foi na passadeira vermelha que foi dado o primeiro grito de libertação quando Alicia Keys apareceu sem qualquer maquilhagem. A cantora tinha, no final de maio, escrito uma longa carta no site de Lena Dunham onde se dizia cansada das exigências dos outros para que estivesse sempre maquilhada, para que disfarçasse o seu cabelo afro ou o seu tom de pele. Saturada destas exigências, Alicia Keys decidiu assumir o seu rosto e a sua africanidade. E sobretudo parar de se esconder. “Não vou mais esconder-me. Nem a minha cara, nem a minha cabeça, nem a minha alma, nem os meus pensamentos, nem os meus sonhos, nem as minhas lutas, nem o meu crescimento emocional. Nada”, escreveu. Mas a cantora ainda não tinha comparecido num grande evento após esta decisão e havia até quem questionasse se se manteria fiel ao que havia escrito. Mas manteve e percorreu a passadeira vermelha dos BET Awards de cara lavada. E sorriso rasgado.
Já no interior do Microsoft Theatre, em Los Angeles, o arranque da cerimónia coube a Beyoncé – que acabou por ser a grande vencedora da noite, levando para casa, entre outros, o prémio para Melhor Artista e para Melhor Vídeo por “Formation”. Enquanto um grupo de bailarinos percorria os corredores da sala de espetáculos, ouvia-se um excerto do discurso de Martin Luther King, “I Have a Dream”. Em palco, Beyoncé surge a andar sobre água, rodeada de labaredas enquanto canta “Freedom”, faixa de “Lemonade”. A reta final da canção é partilhada, tal como no original, com o rapper Kendrick Lamar, num momento extremamente poderoso, com a dupla a cantar: “I break chains all by myself/ Won’t let my freedom rot in hell/ Hey! I’ma keep running/ Cause a winner don’t quit on themselves.”
Além dos quatro momentos de tributo a Prince, o músico que morreu no passado dia 21 de abril, com as eleições presidenciais nos EUA e o Brexit, a política foi mesmo o prato forte destes BET Awards. Desde a t-shirt de Usher, onde se podia ler “Don’t Trump America”, aos apelos da presidente da BET, Debra Lee, para que as pessoas não se demitam de votar: “Todos precisamos de ter uma posição contra a violência. Conheçam a posição dos vossos políticos em relação ao controlo de armas. Usem a vossa voz e o vosso voto”, ou ainda ao discurso do ator Samuel L. Jackson, após receber o Lifetime Achievement Award: “Votem e levem mais oito pessoas convosco para votarem. Não se deixem enganar como se deixaram enganar em Inglaterra.” No final, Jackson fez ainda questão de sublinhar aquele que foi unanimemente considerado como o mais marcante momento da noite – o discurso de Jesse Williams – como algo que não ouvia desde a década de 1960.
O ator de “Anatomia de Grey” tem-se afirmado na luta humanitária, sendo uma voz ativa do movimento Black Lives Matter e tendo participado, em outubro de 2014, nos protestos contra a morte do jovem Michael Brown e posteriormente reunido com o presidente Obama. Foram justamente estes posições que lhe valeram agora este Humanitarian Award. Ao receber o prémio, Williams emocionou a plateia com um discurso inflamado sobre as desigualdades raciais nos Estados Unidos da América. Depois de agradecer aos pais e à mulher, dedicou o prémio a todos os ativistas, advogados de direitos civis, pais que enfrentam dificuldades, famílias, professores e estudantes que “percebem que um sistema construído para nos dividir, empobrecer e destruir não pode continuar se nos mantivermos de pé”.
Sem qualquer pudor, Williams prosseguiu discurso referindo que os dados indicam que a polícia norte-americana conseguiu reduzir as mortes de pessoas brancas e portanto ou “obtemos direitos iguais e justiça no nosso país ou teremos de restruturar a função deles e a nossa”. Já com a sala toda de pé, o ator ainda recordou Tamir Rice, o jovem que foi baleado por polícias em Cleveland, em 2014, quando tinha apenas 12 anos.
A terminar, o ator sublinhou o envolvimento dos afro-americanos na construção do país e como, ainda assim, nunca foram vistos como iguais: “Não houve nenhuma guerra que não lutássemos e na qual não morrêssemos. Não há nenhum trabalho que não tenhamos feito, nenhum imposto que não nos tenham cobrado – e pagámos todos. Mas a liberdade continua a ser condicional para nós. Continuam a dizer-nos que somos livres. Mas os jovens que morreram ainda estariam vivos se não tivessem sido… tão livres. A liberdade vem sempre a seguir, mas nós queremo-la agora. E quem não tem interesse em direitos civis iguais para os negros, então não faça sugestões: sentem-se. Estamos fartos que esta invenção chamada whiteness use e abuse de nós, enterrando os negros longe da vista e dos pensamentos, enquanto nos extraem a nossa cultura, os nossos dólares, o nosso entretenimento… Só porque somos mágicos não quer dizer que não somos reais.”