Loveable. A sala de teatro como alegoria da caverna contemporânea

Loveable. A sala de teatro como alegoria da caverna contemporânea


O comando ainda não é inteiramente seu, nem se pode dizer que o zapping tenha finalmente chegado a uma sala de teatro, mas o novo espectáculo da Plataforma285, que estreia amanhã no pequeno auditório da Culturgest e ali ficará até o dia 28 de Junho, dá um passo firme no sentido de fazer do seu…


A peça chama-se Loveable, e pode-se dizer que é bem mais do que a mera soma das suas partes. Se colhe desde logo o interesse dos sufragistas de sofá ao prometer dar-lhes a possibilidade de votar para passar à frente, avançar para a cena seguinte, o verdadeiro desafio é se o público mais que interagir democraticamente, aceita alguma responsabilidade e que responsabilidade. Para começar pela duração de um espectáculo que pode acabar em 20 minutos ou prolongar-se até uma hora e meia. Mas mais do que isso pela necessidade de ser confrontado com as aparentes escolhas de um público mais vasto, a sociedade contemporânea.

De resto, a intervenção do público também depende do grau de participação da audiência, se esta se põe de acordo ou não na hora de votar. Acesas e dirigidas ao tecto, as pequenas lanternas entregues a cada pessoa servem para expressar o voto, havendo um sistema de contagem que projecta sobre uma coluna no centro do palco a percentagem do público que quer seguir para a cena seguinte. 51% é o que basta para a acção em palco ser interrompida.

Ao todo, o espectáculo conta com 13 cenas, mas não se trata de uma peça de dramaturgia clássica, nem há propriamente um enredo. Aqui o que está em causa é o próprio desejo ou curiosidade do público. As cenas em palco são um reflexo e uma reflexão sobre os conteúdos que hoje dominam os meios de difusão em massa. Um espectáulo que pretende responsabilizar a sua audiência, mas que funciona ao mesmo tempo como uma estentórica alegoria, que assume uma crítica feroz aos meios de comunicação em massa. O i esteve à conversa com Raimundo Cosme, director artístico do espectáculo, para tentar perceber o conflito representado pelo trabalho da Plataforma285.

Este espectáculo funde vários conceitos, entre o teatro, o concerto, o programa de variedades… Como é que define esta proposta?

Este espectáculo vem na sequência de mais sete espectáculos nossos e vem num ciclo de trabalhos que fundem aspectos próprios de programas televisivos, conteúdos ‘trash’, portanto, que integram já por si uma lógica de performance, música, lixo, vulgaridade, uma actualidade banal, com a lógica de uma espectáculo de teatro. Cada um dos nossos espectáculos têm sido testes entre formatos. Fizemos conferências, concertos… O nosso último espéctáculo era um concerto. Não havia outro texto que não as próprias letras. Era um concerto do início ao fim. Este espectáculo parte de uma visão sobre a ‘trash tv’ a partir das ferramentos do teatro. Vem de uma vontade de pensar sobre o porquê de continuar a fazer espectáculos nesta sociedade em que o que parece ser mais consumido é o lixo televisivo, o lixo também no teatro. Num tempo em que todas as formas que conhecemos estão mais do que esmifradas e continuam a ser um sucesso. O que queremos é uma realidade que cabe em reality shows… Presos no estrangeiro, perdidos na ilha todos nus… E vem dentro desta lógica. Sendo que é este o público então porquê continuar a fazer espectáculos de teatro? O que é que nós queremos? E – indo mais longe que isso – num país onde há mais inscrições para a Casa dos Segredos do que para o Ensino Superior isso é sintomático de uma série de problemas que deviam ser debatidas ao mais alto nível político, na Assembleia da República, e pelo Ministério da Educação e pelas pessoas que continuam a fazer arte e que estão envolvidas com a Cultura. Porque isto é indicador perigoso de uma sociedade que estamos a construir.

E em que medida o vosso trabalho intervém neste cenário?

O nosso espectáculo pretende responsabilizar o público. Pôr o foco no público, entregando-lhe a possibilidade de escolher aquilo que quer ver. Assim, é um espectáculo que nas suas 13 cenas vai da mais sublimada a nível estético, da mais contemplativa, até à mais banal e em linha com este universo trash, e todas elas estão igualmente a votos. O próprio elenco foi composto não só com actores de teatro, mas conta com uma criança que foi uma das finalistas de um reality show chamado The Voice Kids, conta ainda com um youtuber… Temos uma equipa muito variada e que procura abarcar os campos da contemporaneidade.

Esta ideia de transferir para o teatro o modelo do zapping, dando ao público a possibilidade negar-se a uma sequência, de passar à frente… Já alguma vez tinham utilizado um modelo de interacção deste género?

O público tem sempre uma responsabilidade qualquer nos nossos espectáculos, e nós pensamo-lo sempre como um agente neles, no entanto, nunca o tínhamos feito de uma forma tão directa. Mas, entre as interrupções, o seu posicionamento… O nosso último espectáculo, por exemplo, foi criado a partir de lógicas de marketing. Eu estudei economia antes de, no final do 12º ano, ter escolhido estudar teatro, e as ferramentas do marketing foram a base da criação do próprio texto. Mas aqui o público tem um papel decisivo. O espectáculo pode durar de 20 minutos a uma hora e meia. Nunca sabemos o que vai acontecer, e não dá para alterar ou para nos prepararmos para o que vai acontecer. Aliás até podíamos, mas não queremos contornar o efeito da acção do público. É uma instabilidade tanto para quem está em cena como para quem está fora. Para manobrar este espectáculo em termos técnicos é um pesadelo.

E neste vosso percurso, que tipo de reacções e lições tiraram da resposta dos vossos públicos?

O que temos feito é de certo modo pôr uma lupa sobre uma série de questões. E o público é um aspecto fundamental. Procuramos ter o público na condição de cidadãos activos de uma sociedade. Sociedade essa a que pertencemos e para a qual trabalhamos.

E do confronto com o público que tipo de situações têm ocorrido?

Depende do espectáculo. Temos tido as reacções mais diversas. Pessoas que se sentem profundamente irritadas por se sentirem manipuladas, quando a lógica é essa; pessoas que se sentem profundamente livres e aquelas para quem tudo isto lhes passa ao lado e se limitam a deixar-se levar. Mas o que é muito importante para nós enquanto estrutura, é o reflectir sobre isto, porque nos obriga a enquadrar-mo-nos num sítio.

Para além de uma crítica deste ambiente mediático banalizado, há uma crítica tecida em particular aos próprios modelos da criação teatral contemporâneo, partindo da ideia de que este possa estar a reflectir o seu tempo numa perspectiva exilada deste problema?

Sim, completamente. Quando começámos este trabalho pensámos numa coisa que é que, se não quisermos pôr nada em questão, se quisermos simplesmente assumir uma atitude bastante ‘cool’, estarmos em consonância com o meio, todos nós conhecemos uma fórmula que nos permite fazê-lo. Em todas as áreas, não é só no teatro, nos meios artísticos… Se queremos que uma pintura funcione, temos uma série de grandes influências por onde nos guiarmos. Há caminhos que já estão perfeitamente delineados para quem quer simplesmente afirmar-se como artista. Todos já vimos exemplos de artistas que não fazem mais que uma pintura horrível mas que, ampliada a uma escala esmagadora, se torna uma coisa monstruosa e impactante. Há sempre soluções fáceis em todas as áreas, e no teatro também. Nós esmifrámos essas fórmulas que conhecemos. A nós importa-nos não apenas o resultado final mas também o propósito. Importa-nos começar com questões e, mesmo que estas não se resolvam, prosseguimos porque entendemos que muitas vezes o essencial é essa experiência de não se chegar a uma resolução do problema. Já começámos um processo em que uma das perguntas era qualquer coisa como: Se a solução de muitos destes males teria de passar pelo fim do capitalismo? Não há resposta. Eu não tenho conhecimento de causa, nem conhecimento do efeito, principalmente, para saber se essa seria a solução. Mas o que nos importa são as questões que com os espectáculos levantamos. É formar um grupo à volta de um conjunto de questões para as discutirmos, e pormos isso em cena.

O que vos inquieta quando discutem a transformação dos canais mediáticos, como estes meios parecem transformar-se num mero espelho da própria sociedade, como se a sociedade se refastelasse no espectáculo de si mesma?

Penso que o problema de fundo é maior que esse. Não tem só a ver com a dimensão do espectáculo mas prende-se com a dissolução do papel activo que cabe aos cidadãos. O George Steiner – um pensador que é a minha principal base de pesquisa para quase todos os espectáculos que faço como para a minha vida em geral – diz que nunca nenhuma sociedade se pode ver de forma tão imediata como esta. Isso tem grandes consequências. Nós podemos ver a guerra em directo. Há um explosão hoje do outro lado do mundo e nós somos informados dela. Não há uma explosão e nós julgamos que existiu. Tudo tem por base a informação ou a desinformação. Tudo nos é dado num mesmo plano, um mural em que a nossa acção se reduz ao ‘scrolling’. Vemos um gatoa cair de um prédio, a seguir uma criança a fazer graças, logo depois uma bomba, e tudo está ao mesmo nível e… não interessa. Acho que o problema de fundo é que nos desacreditámos o valor e o papel da política. Em geral, as pessoas desacreditaram o seu papel social e político, porque há um descrédito no regime democrático. Há qualquer coisa a mudar agora. Vamos ver o que acontece neste referendo no Reino Unido [sobre a permanência ou não na União Europeia] e nas eleições em Espanha e, sobretudo, nos EUA. Vamos ver o que acontece. Mas há um grande descrédito no nosso papel como cidadãos e é por isso que há uma tão grande abstenção. Isto leva-nos a pensar que as decisões que se tomam não são nossas: Eu não tenho nada a ver com isto e não posso fazer nada para alterá-lo.

Como é que nasceu esta consciência política no teu trabalho?

Lembro-me de ser pequeno e de viver um período em que houve vários referendos no país. Fosse para a regionalização, o aborto, uma série de questões políticas ou de ordem mais social. Desde que me tornei eleitor só me lembro de ter sido consultado sobre um tema em específico, o aborto. Nunca mais fomos a referendo. Nem para a entrada do FMI nem para coisa nenhuma. Mas se fôssemos eu adorava saber as respostas que daríamos. Como adorava saber qual seria a taxa de abstenção. Estes problemas reflectem-se na maneira como vemos a arte. Nós não queremos os temas polémicos discutidos com profundidade na arte, não queremos o lugar político perspectivado pela arte, ou o nosso lugar social. Queremos uma coisa que seja fácil, leve. É por isso que os reality shows têm todo este sucesso. Os programas mais bem sucedidos nas televisões eram, até há uns anos, as telenovelas, mas já passaram a ser os reality shows. Não havia muita publicidade nos canais por cabo, agora estes competem com os canais generalistas, que têm tentado combater a dispersão dos anunciantes seduzindo espectadores a todo o custo. A solução foi recorrer a reality shows, por isso é que agora se sucedem uns atrás dos outros. Toda a gente sabe que o próximo irá mais longe do que o anterior. O Love on Top 2 será pior do que o 1, e não há problema. Já estamos todos preparados para isso. Todos nos lembramos do choque que foi o primeiro Big Brother, o de assistir aos comportamentos de pessoas em tempo real na televisão, como se peixes num aquário. E agora já não nos causa sequer espanto que as pessoas ali se queiram enfiar, como não nos causa vê-los a fazer sexo ou expressar qualquer forma de intimidade para toda a gente ver. Se eles discutem, e mesmo que a discussão seja muito feia, então embala-se, põe-se-lhe uma música, faz-se um remix e esse encaixa perfeitamente num espectáculo e já sabemos que vai vender.

Numa nota de introdução ao “Crash”, isto há vinte anos, o escritor J.G. Ballard diz que “o equilíbrio entre a ficção e a realidade tem sofrido alterações significativas nas últimas décadas, com os seus papéis a inverterem-se cada vez mais”. Refere que “vivemos num mundo governado por todo o tipo de ficções: o mass-merchandising, a publicidade, a política conduzida como subproduto da publicidade e a aniquilação de qualquer reacção espontânea dos espectadores por parte do ecrã de televisão”. Na perspectiva deste romancista norte-ameriano, “vivemos dentro de um enorme romance e é cada vez menos necessário o escritor inventar o conteúdo ficcional do seu trabalho”. Ele diz que a ficção já existe, pelo que a tarefa do escritor é agora inventar a realidade. De que modo isto se aplica ao vosso trabalho?

Não conhecia essa frase, mas acho que nenhuma espelha tão bem este espectáculo. Algumas das cenas que temos em cena cabem hoje tanto num palco de teatro como num ecrã de televisão, e são de facto uma série de ficções. A maior ficção parece-me que será esta ideia que nos leva a perguntar: Será que é realmente isto que as pessoas querem ver? Será que é a isto que chegámos, que não é preciso reinventar mais nada? Será que isto já está vendido? Mas o dispositivo que coloca isto em perspectiva, que é o das votações, é de facto o que nos permite dizer que inventámos uma realidade. Não pode ser mais real o espectáculo nesse sentido.