Chegou antes da hora marcada. Podia ter esperado no bar do Nimas, enquanto bebia um café ou uma água gelada que ajudasse a ignorar o calor que se sentia. Mas o apelo da sala de cinema falou mais alto. Fala quase sempre, para José Luis Guerin, nome maior do cinema de autor espanhol, responsável por títulos como “Comboio das Sombras” e “Dans la Ville de Sylvia”. Sobretudo quando na sala passa um clássico como “Alexandre Nevsky”, de Serguei Eisenstein. “O cinema russo é uma inspiração permanente para mim”, diz-nos. Esta influência dos clássicos está, de resto, bastante presente em “A Academia das Musas” um filme sobre amores infelizes e a necessidade de nos sentirmos fascinados.
Há filmes aos quais volta regularmente?
Sim. Os filmes de Chaplin, de [Éric] Rohmer, de Jacques Tati, de [Carl Theodor] Dreyer… São filmes que revejo sempre e realizadores que me dão uma identidade como espetador. Por vezes estamos muito perdidos em todo este caos audiovisual, nesta grande acumulação de imagens em todo o lado. Há imagens que me acompanham quase desde a infância, com as quais me formei como espetador e sinto sempre que, quando tenho uma crise de identidade, estes filmes devolvem-me a imagem de quem eu sou.
A identidade do espetador é diferente da identidade do cineasta?
No meu caso são muito parecidas. Nunca estudei cinema numa escola. Franco encerrou a escola de cinema que considerava ser um ninho de comunistas, por isso a minha formação aconteceu a ver filmes. Hoje em dia é completamente diferente: em Espanha, os miúdos que estudam cinema não vão ao cinema. Para mim, ver filmes e fazer filmes é uma atividade ‘reversível’. Tal como um escritor começa a escrever como um gesto de gratidão com aqueles que já leu.
E também de admiração?
Sim. Por vezes vejo filmes de jovens cineastas dos quais penso que não foram bons espetadores. É uma carência. Sinto que não entenderam bem o cinema, que não sabem reconhecer o valor de uma frase, de uma imagem.
Começámos esta conversa a partir da importância, para si, do cinema clássico. Esta “Academia das Musas”, de certa forma, é uma ode a um certo classicismo?
De certa forma sim, mas ao mesmo tempo é também muito moderno na sua formulação. Teria sido impossível fazer este filme em película, só foi possível fazê-lo com ferramentas muito humildes que tornaram possível capturar estes momentos quase íntimos. Este é um filme que se foi construindo pouco a pouco e, neste aspeto, é diferente do cinema clássico, que partia de um guião prévio muito definido. Aqui houve uma alternância entre dias de rodagem e dias de montagem e, neste processo, fui descobrindo este filme.
Quando começou não tinha definido o que seria este o projeto?
Não. Nem sequer sabia que iria ser um filme. Comecei a filmar, como se fosse uma experiência sobre a palavra, mas sem a ideia de fazer um filme. À medida que fui acumulando material, fui pensando que podia dar lugar a uma curta-metragem, depois a um videoinstalação, depois até pensei em fazer uma espécie de telenovela popular, com muitos amores desgraçados… Pensei em formatos distintos até chegar à conclusão que seria realmente um filme. É um filme de processo.
Como um organismo vivo?
Exatamente. E isso é que é surpreendente porque tem uma estrutura muito clássica, em termos de sequências, mas a forma de trabalho só é possível no mundo contemporâneo.
Desejo, infidelidade e inspiração são as três palavras-chave deste filme?
Não consigo reduzir o filme apenas a três palavras, apesar de essas estarem certas. Mas também é muito um filme sobre relações de poder e sobre os perigos do ensino ou do amor como uma construção literária. Mas nunca consigo sintetizar os meus filmes.
Mas é um filme onde a mulher tem definitivamente muito peso, um peso quase da Antiguidade Clássica. Esse regresso ao passado é importante nos tempos que correm?
O bonito em deixar que apareçam os legados culturais do passado, é que se confrontam com as contradições do presente. A ideia de uma Academia de Musas, que não era minha mas das alunas e do professor, achei que era impossível, que ninguém acreditaria nisso neste século. Mas fui filmando e deixei-me seduzir pelas suas palavras. O belo do cinema é isto: o inverosímil pode tornar-se real.
Essa dualidade sempre o seduziu?
Sim, desde a altura que fiz o meu primeiro filme e me senti num beco sem saída. Foi por isto que me aproximei do documentário, porque quis procurar uma renovação na maneira de contar histórias. Desde então que faço os dois géneros.
Para que se sinta mais facilmente surpreendido?
Sim, porque isso é fundamental para mim. Perderia o desejo de fazer um filme se já soubesse como seria. Seduz-me a interação com aquilo que não posso controlar.
Este é o seu segundo filme com estreia comercial em Portugal.
Sim, apesar de todas serem sido apresentadas aqui, em festivais e cineclubes. E fico muito contente com isso porque sempre desejei que, ao nível do cinema, nós espanhóis tivéssemos sido colonizados por vocês, portugueses. Vocês têm uma conceção do cinema muito mais interessante. Em Espanha há uma aposta num tipo de cinema comercial pensado para competir com Hollywood que é algo impossível. Em Portugal nunca pensaram assim, mas antes em fazer um cinema que não se poderia fazer noutro local do mundo. Foi isto que permitiu surgirem nomes como Manoel de Oliveira, João César Monteiro, Pedro Costa, Miguel Gomes… Em Portugal há um património cinematográfico extraordinário.
Penso que em Portugal não existe esse mesmo olhar.
Para mim é consensual. Basta ver a presença do cinema português nos festivais. O cinema português é mais ambicioso que o espanhol. Invejo muito os vossos cineastas. E tudo isto me faz sentir algo isolado no cinema espanhol.