Bento, titular da seleção, e para muitos o melhor guarda-redes de sempre do futebol português, todos os dias pelas cinco da manhã estava com o sogro na lota de Setúbal e Sesimbra, a ajudá-lo a carregar caixotes de peixe, depois ia buscar os colegas ao Barreiro para treinarem no Benfica.
Foi um jogador de superlativo, sendo que para isso contribuiu ser um homem de exceção.
Os exemplos podiam multiplicar-se, de grandes futebolistas, exemplos de execução técnica e eficácia ganhadora, procuradores da esperança de milhões de adeptos, deuses maiores que deuses, porque estes estão a uma raiva de distância e a um toque de suor, que na vida privada, entre o uso das chuteiras, têm vidas assombrosas de coragem e redenção.
Quarta-feira, na altura em que escrevo este texto, desconheço que destino espera a seleção nacional no jogo com a Hungria. Mas sei outras coisas.
Sei que milhões de portugueses estarão reunidos em casa de familiares, com os seus amigos em cafés e espaços públicos para ver o jogo.
Sei que, por 90 minutos, tudo será relativo e as batidas ritmadas dos corações a produzir aquela síncope requebrada a ligar a última nota de um compasso com a primeira do seguinte que a recebe com o peito para fazer das duas uma só nota, o golo libertador. Samba urbano, fantasiado de dente cerrado a gritar o hino que nos pariu.
Às cinco em ponto da tarde, o amarelo vai iniciar a ultima valsa por sortes madrastas, a mais esperada, onde só onze contam, os outros são o nosso pecado e agonia.
Às cinco da tarde, o país estava em deserto e mesmo o falso indiferente queria saber como “está?”, para remoer baixinho se a bola não correr de feição.
Estava quente como quando fuzilaram o poeta contra a parede branca. Lorca que escreveu sobre o touro e a luz, amava a vida e percebeu a proximidade da morte. Os matadores que o sangraram eram espetros antecessores de hooligans.
Às cinco da tarde, os amantes apertaram os corpos de amor e os pais com os seus filhos nos ombros eram os homens mais altos do mundo. Às cinco em ponto da tarde, o taxista desligou, o sacerdote acariciou sem malícia o santo de devoção, e a velhota pôs-se a apanhar ar, tic-tac, tic-tac, a vida da gente a descontar.
Só o futebol tem esta capacidade de mobilização que contrasta com o desapego e o afastamento da política. O rosto desolado dos perdedores revelam a frustração e a dor que só nos aflora perante grandes desgraças, em contraste com a alegria da vitória que nos transforma em divinos.
O homem necessita de uma dimensão espiritual que encontra no futebol. Nada mais parecido a um rito religioso que as celebrações das vitórias, os cânticos, os gestos, os símbolos, a elevação dos troféus evoca toda uma eucaristia, a da bola de futebol.
O futebol converteu-se numa religião e a política transfigurou-se em espetáculo. O primeiro necessita de fé e adesão, o segundo alimenta-se, cada vez mais, de pura representação.
O futebol provoca o épico e a emoção que nos falta no quotidiano, enquanto que o debate político que se pode – morfinar – nas tertúlias televisivas semeia o vazio e cultiva o desinteresse.
Aos 19 minutos de jogo corrido, prenúncio de morte em Lyon: a dama da gadanha cobiçava as presas. Ao minuto 42 renascemos, nas esquinas da pátria os grupos culpados de silêncio recolheram a cal.
Nani, o que não era para estar de garra solta, a sorrir connosco, os de pés nus, a defender este jogo que é nosso. Intervalo.
Às cinco da tarde, não há vento, só um calor que oprime e nos traz uma fragrância indistinta, talvez desespero. Minutos 46, 50, 54… Tic-tac, tic-tac, a vida da gente a descontar mais.
Arriba Ronaldo, a força esteja com todos. Nenhum outro desporto nos identifica tanto com os seus protagonistas como o futebol. Como eles sonhamos escapar do fado e torcer o destino.
Garrincha, Coluna, José Torres, Jordão, Pauleta, Futre Eusébio, Ronaldo, Quaresma, Maradona, Pelé, Cantona, meninos de bairros pobres das periferias e das favelas, construíram uma vida sabendo que para eles o golo era mais que a glória do momento, também era o pão e o respeito.
O futebol não tem heróis nascidos das elites, tem homens que fogem há fome e há pobreza para se transformarem em estrelas maiores. Correm pela bola para agarrar a vida. Por isso nos identificamos com eles quando vencem, somos nós que também ganhamos. 90 minutos.
São cinco em ponto da tarde em todos os relógios. E a sombra não se põe!
Artur Pereira