A diferença entre Jo Cox e os mortos de Orlando


Joana Ramiro é uma jornalista portuguesa que reside em Londres. Escreve sobre assuntos sociais, migração e a crise europeia para várias publicações, incluindo “Open Democracy”, “New Statesman” e “Vice”.


A morte da deputada britânica Jo Cox às mãos de um simpatizante fascista chocou o mundo. Chocou talvez ainda mais por vir no final de uma semana que começara com o massacre de 50 pessoas numa discoteca LGBT em Orlando, Florida. As semelhanças entre estes dois crimes abomináveis são fáceis de identificar. Ambos os assassinos foram homens motivados pelo preconceito e pelo ódio. Ambos, temos vindo a descobrir no desenvolvimento das respetivas investigações policiais, foram crimes premeditados.

Mas há também diferenças importantes que se devem evidenciar como parte da análise que todos temos de fazer, enquanto membros de uma sociedade que gerou ambos os homicidas.

Thomas Mair, que em Londres compareceu em tribunal na passada sexta-feira para prestar primeiros depoimentos, deu como nome as palavras: “Morte aos traidores, Grã-Bretanha primeiro!” Na sua casa, quando revistada, a polícia encontrou materiais diversos ligados a grupos de extrema-direita e retalhos de artigos sobre Cox, uma deputada trabalhista cujas intervenções no parlamento repetidamente reclamaram maior intervenção na crise de refugiados e elogiaram a diversidade étnica do seu círculo eleitoral.

Mair foi também identificado em fotografias do grupo ultranacionalista e islamofóbico Britain First (Grã-Bretanha Primeiro), o mesmo cujo nome terá gritado durante o ataque e cujos líderes rapidamente se tentaram distanciar do crime dizendo nunca terem ouvido falar de Thomas Mair. Mair, aliás, terá mesmo dito aos agentes que o prenderam na quinta-feira, minutos depois de ter esfaqueado e morto a tiro Jo Cox, que era um “ativista”. Achava-se, portanto, a agir por razões ideológicas, quem sabe se não aberta ou tacitamente apoiado por outros membros das organizações a que pertencia.

Omar Mateen, que morreu no tiroteio que se seguiu ao seu ataque no Pulse Club, era um homem alegadamente violento que teria agredido a primeira mulher e expresso opiniões homofóbicas em família. Se bem que muçulmano, pessoas chegadas a Mateen disseram nunca o ter achado particularmente religioso. No dia do ataque, Mateen ligara às autoridades com ameaças, mas quando lhe perguntaram se pertencia a algum grupo específico, o americano citou duas organizações islâmicas radicais opostas. Nenhuma delas reivindicou a autoria do ataque ao Pulse.

Acho importante fazer estas distinções sumárias porque as mortes dos jovens no Pulse e a de Jo Cox no norte de Inglaterra não se compreendem e não se previnem sem também se entender a maneira como foram tratadas em praça pública, por políticos e comunicação social.

Na sexta-feira, a Assembleia aprovou por unanimidade os votos de condenação e pesar por ambos os ataques. No texto lido pelo presidente, Eduardo Ferro Rodrigues, a morte de Jo Cox é descrita enquanto “ato violento, a todos os títulos injustificável e intolerável”, as mortes no Pulse enquanto “terrorismo”. Também na imprensa britânica se deram estas dicotomias. Mair era um “homem calado”, com “pobre saúde mental”, Mateen um “radical”, um “islamita”, e a homofobia do seu ato foi questionada ao vivo num canal de televisão.

A meu ver, estas variações no discurso sobre dois atentados à vida existem por causa da cor da pele daqueles que os perpetraram. A imprensa e a política são indústrias preguiçosas, raramente se dão ao trabalho de aprofundar as explicações de casos complexos, como o terrorismo ou o homicídio político. Mas é precisamente por serem complexos e por irem de encontro aos nossos maiores medos, aos nossos maiores preconceitos, que têm de ser explicados extensivamente.

O crime cometido por Thomas Mair foi um ato tão aterrorizador quanto o de Omar Mateen. O seu crime foi, em parte, auxiliado porque no mundo ocidental o “discurso do ódio” vindo de bocas brancas é permitido sob o véu da liberdade de expressão e negligenciado enquanto algo supostamente inócuo. “O fascismo já não existe”, dizem. A verdadeira ameaça vem sempre de um outro elemento social mais diferente, menos fácil de compreender, com quem a comunicação é um esforço maior, com quem a interação implica sairmos do nosso espaço de conforto.

O racismo de Thomas Mair era um racismo pobre, mentalmente perturbado, mas não vinha só. No decorrer dos últimos meses, a propósito do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia, veio ao de cima o racismo estrutural da sociedade britânica, que não estaria fora de contexto em Portugal. A xenofobia expressa pelo UKIP ecoa nos seus homólogos portugueses, como o Partido Nacional Renovador. O discurso anti-islão e pelo fechar das fronteiras à imigração é expresso teimosamente, sem oposição ou mesmo verdadeira moderação, tanto em Londres como em Lisboa.

O perigo maior que a nossa sociedade enfrenta hoje é a criação de um milhar de Thomas Mairs, seguido de outras radicalizações de sabores diferentes. O ódio que é permitido a uns revela-se na índole de outros, e assim sucessivamente.

Estamos todos de luto pelas dezenas de pessoas que perderam a vida nos últimos dias, mas devíamos também lamentar o fim de um tempo no qual acreditámos que o debate e a justiça se faziam imparcialmente dentro da democracia.

A diferença entre Jo Cox e os mortos de Orlando


Joana Ramiro é uma jornalista portuguesa que reside em Londres. Escreve sobre assuntos sociais, migração e a crise europeia para várias publicações, incluindo “Open Democracy”, “New Statesman” e “Vice”.


A morte da deputada britânica Jo Cox às mãos de um simpatizante fascista chocou o mundo. Chocou talvez ainda mais por vir no final de uma semana que começara com o massacre de 50 pessoas numa discoteca LGBT em Orlando, Florida. As semelhanças entre estes dois crimes abomináveis são fáceis de identificar. Ambos os assassinos foram homens motivados pelo preconceito e pelo ódio. Ambos, temos vindo a descobrir no desenvolvimento das respetivas investigações policiais, foram crimes premeditados.

Mas há também diferenças importantes que se devem evidenciar como parte da análise que todos temos de fazer, enquanto membros de uma sociedade que gerou ambos os homicidas.

Thomas Mair, que em Londres compareceu em tribunal na passada sexta-feira para prestar primeiros depoimentos, deu como nome as palavras: “Morte aos traidores, Grã-Bretanha primeiro!” Na sua casa, quando revistada, a polícia encontrou materiais diversos ligados a grupos de extrema-direita e retalhos de artigos sobre Cox, uma deputada trabalhista cujas intervenções no parlamento repetidamente reclamaram maior intervenção na crise de refugiados e elogiaram a diversidade étnica do seu círculo eleitoral.

Mair foi também identificado em fotografias do grupo ultranacionalista e islamofóbico Britain First (Grã-Bretanha Primeiro), o mesmo cujo nome terá gritado durante o ataque e cujos líderes rapidamente se tentaram distanciar do crime dizendo nunca terem ouvido falar de Thomas Mair. Mair, aliás, terá mesmo dito aos agentes que o prenderam na quinta-feira, minutos depois de ter esfaqueado e morto a tiro Jo Cox, que era um “ativista”. Achava-se, portanto, a agir por razões ideológicas, quem sabe se não aberta ou tacitamente apoiado por outros membros das organizações a que pertencia.

Omar Mateen, que morreu no tiroteio que se seguiu ao seu ataque no Pulse Club, era um homem alegadamente violento que teria agredido a primeira mulher e expresso opiniões homofóbicas em família. Se bem que muçulmano, pessoas chegadas a Mateen disseram nunca o ter achado particularmente religioso. No dia do ataque, Mateen ligara às autoridades com ameaças, mas quando lhe perguntaram se pertencia a algum grupo específico, o americano citou duas organizações islâmicas radicais opostas. Nenhuma delas reivindicou a autoria do ataque ao Pulse.

Acho importante fazer estas distinções sumárias porque as mortes dos jovens no Pulse e a de Jo Cox no norte de Inglaterra não se compreendem e não se previnem sem também se entender a maneira como foram tratadas em praça pública, por políticos e comunicação social.

Na sexta-feira, a Assembleia aprovou por unanimidade os votos de condenação e pesar por ambos os ataques. No texto lido pelo presidente, Eduardo Ferro Rodrigues, a morte de Jo Cox é descrita enquanto “ato violento, a todos os títulos injustificável e intolerável”, as mortes no Pulse enquanto “terrorismo”. Também na imprensa britânica se deram estas dicotomias. Mair era um “homem calado”, com “pobre saúde mental”, Mateen um “radical”, um “islamita”, e a homofobia do seu ato foi questionada ao vivo num canal de televisão.

A meu ver, estas variações no discurso sobre dois atentados à vida existem por causa da cor da pele daqueles que os perpetraram. A imprensa e a política são indústrias preguiçosas, raramente se dão ao trabalho de aprofundar as explicações de casos complexos, como o terrorismo ou o homicídio político. Mas é precisamente por serem complexos e por irem de encontro aos nossos maiores medos, aos nossos maiores preconceitos, que têm de ser explicados extensivamente.

O crime cometido por Thomas Mair foi um ato tão aterrorizador quanto o de Omar Mateen. O seu crime foi, em parte, auxiliado porque no mundo ocidental o “discurso do ódio” vindo de bocas brancas é permitido sob o véu da liberdade de expressão e negligenciado enquanto algo supostamente inócuo. “O fascismo já não existe”, dizem. A verdadeira ameaça vem sempre de um outro elemento social mais diferente, menos fácil de compreender, com quem a comunicação é um esforço maior, com quem a interação implica sairmos do nosso espaço de conforto.

O racismo de Thomas Mair era um racismo pobre, mentalmente perturbado, mas não vinha só. No decorrer dos últimos meses, a propósito do referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia, veio ao de cima o racismo estrutural da sociedade britânica, que não estaria fora de contexto em Portugal. A xenofobia expressa pelo UKIP ecoa nos seus homólogos portugueses, como o Partido Nacional Renovador. O discurso anti-islão e pelo fechar das fronteiras à imigração é expresso teimosamente, sem oposição ou mesmo verdadeira moderação, tanto em Londres como em Lisboa.

O perigo maior que a nossa sociedade enfrenta hoje é a criação de um milhar de Thomas Mairs, seguido de outras radicalizações de sabores diferentes. O ódio que é permitido a uns revela-se na índole de outros, e assim sucessivamente.

Estamos todos de luto pelas dezenas de pessoas que perderam a vida nos últimos dias, mas devíamos também lamentar o fim de um tempo no qual acreditámos que o debate e a justiça se faziam imparcialmente dentro da democracia.