Chegou mais cedo à sua própria exposição. Por um lado receava que ainda não estivesse tudo pronto, mas sobretudo queria usufruir da oportunidade de ver o seu trabalho. E a forma como este mudou em 30 anos. Uma mudança marcada sempre pela continuidade, palavra que, de resto, serve de título à exposição de EduardoSouto de Moura que arrancou ontem na Garagem Sul, no CCB, espaço que não visitava há 23 anos, altura em que teve aqui a exposição “Percurso”. Não é que não goste de expor o seu trabalho, mas falta-lhe tempo.
Diz que foi muito renitente em aceitar a proposta para esta exposição. Porquê?
Estou muito mais interessado em acabar os projetos que tenho em mãos do que em fazer exposições. Mas também não sou falso modesto, quando estas coisas correm bem, fico todo contente. Mas quando me propuseram esta exposição disse logo que era impossível, só que insistiram tanto…
É muito fácil de perceber a forma como o seu olhar se demora nas várias obras que aqui estão representadas, como se estivesse a rever um filme. Esse filme é o processo de criação, são as memórias da obra ou tem mais a ver com o que mudaria agora nestes projetos?
É exatamente isso. Sei que não posso mudar nada agora, mas posso tirar ilações do que já está feito para o que vem aí. Esta exposição é um bocado dirigida a mim porque as maquetes, os desenhos, as fotografias… isso eu já tinha e já vi muitas vezes. Mas os filmes que aqui estão é a minha obra vista por outras pessoas: pelos comissários, que me ajudaram a escolher as obras, mas sobretudo pelo Takashi Sugimoto, que realizou os vídeos. O olhar dele interessa-me muito porque não é um arquiteto, é um cineasta, e é um japonês, tem outra cultura, mais contemplativa e estática. Fico pasmado a olhar para estes vídeos e a pensar que naquela obra há uma janela que ficou muito baixa e que um miúdo poderia saltar por ali, ou que noutra obra há vidro e luz a mais e que a paisagem é bonita demais para ser tão vista porque assim não há mistério… Com a idade passei a achar que as casas devem ter menos vidro e mais intimidade.
Esse olhar crítico tem a ver com os anos que o separam das obras que agora aqui mostra ou o seu olhar crítico está sempre muito presente, mesmo em relação ao trabalho mais recente?
O meu sentido crítico está sempre presente, mas à medida que o tempo encurta e a idade avança, é mais acutilante. Cada vez tenho menos tempo para fazer melhor. Mas não é um olhar contemplativo ou saudosista. Estou completamente dirigido para acabar as coisas que tenho e fazer mais e bem. Mas não parto do zero, é sempre uma continuidade. É corrigir e reutilizar o que já fiz. Não vou inventar nada, não me interessa inventar.
Como cliente sentir-se-ia mais fascinado pelo arquiteto Souto de Moura de há 30 anos ou de agora?
Não consigo ter esse olhar porque os tempos mudaram muito. A profissão é completamente diferente. Mas concordo com o que fiz, claro que com algumas críticas, só que eram as oportunidades existentes. Lembro-me que os primeiros muros de pedra que fiz não foi porque gostava de pedra, mas porque me disseram que o betão era muito caro. Hoje é o contrário. Quando comecei havia um conjunto de materiais e de técnicas muito diferentes de hoje. Cada época é uma época e isto está a mudar vertiginosamente. E eu tenho de apanhar o comboio mas cada vez é mais difícil porque fui formado numa ideia de arquitetura e num processo de trabalho que é quase incompatível com a atualidade.
Em que sentido?
No sentido do tempo. Hoje não há tempo para fazer os projetos, as pessoas pedem tudo para ontem. Acham que tenho computador, mas o computador não faz nada, eu é que tenho de criar a obra tal como o jornalista é que tem de escrever o texto.
Essa ideia de imediatismo pode ser prejudicial para o futuro da arquitetura?
É péssima. Sem tempo não há nada. O tempo é muito mais importante do que o espaço, até porque o espaço ninguém sabe o que é. O tempo é fundamental para as pessoas. A arquitetura hoje em dia é multidisciplinar. Antigamente era um engenheiro, um arquiteto e um cliente. Hoje são 20 engenheiros, 20 técnicos, todos a pensarem sobre o mesmo tema e tem de haver quem os coordene. Isto demora muito tempo. Não só todos, individualmente, têm de trabalhar bem, como o arquiteto tem de saber coordenar todos esses trabalhos individuais.
E, no meio de todo esse processo, há espaço para o processo criativo em si ou as condicionantes são tantas que acabam por sufocar a criatividade?
A criatividade é exatamente isso: conseguir ter todos de acordo, sem que eu perca a minha própria vontade individual de fazer o que quero.
Há momentos em que perde essa vontade?
Evidentemente, mas depois tenho de negociar e renegociar. É cansativo. E agora há uma agravante: não há obras em Portugal, tudo é feito a uma certa distância. As viagens e lidarmos com técnicos que não conhecemos é muito cansativo.
E esses técnicos são pessoas que, apesar de não conhecer e de estarem longe, põe em prática o seu nome.
Sim, mas isso do nome não me preocupa muito. Aquilo com que estou preocupado é em conseguir fazer o que quero em sítios, por vezes, muito estranhos a mim próprio.
Como por exemplo? Qual é o local mais estranho para si onde está a trabalhar?
Washington. Não é que esteja a correr mal, mas a maneira como se faz arquitetura e construção é muito diferente. Estou a fazer um prédio num sítio importantíssimo: o cruzamento das duas avenidas principais da cidade, onde antes havia uma bomba de gasolina mas onde agora me pediram para construir um prédio de cinco pisos de habitação. Tive de lá ir seis vezes explicar o projeto. E os projetos lá fora ficam muito piores do que cá em Portugal. Nem gosto de trabalhar lá fora porque não consigo controlar como controlo cá em Portugal. Os portugueses desenrascam-se sempre, deixam tudo para a última mas conseguem. Lá fora é tudo programado e não há hipótese de mudar o que está programado mesmo que se veja que não vai ficar bem. Não há comunicação. E para mim o que tem piada nisto é a ligação às pessoas, os clientes são amigos. Até ver prefiro trabalhar em Portugal, mas aqui perde-se dinheiro. Por isso, para manter a contabilidade do escritório, sou obrigado a trabalhar lá fora. Eu até sou privilegiado, mas mesmo assim pedem-me 50% de desconto. E por vezes nem pagam, mas ainda assim é raro um arquiteto abandonar uma obra por falta de pagamento. É como uma leoa com os filhos. Só que não há arquitetura sem dinheiro. Os escritores bebem uma ginginha num café e escrevem a sua obra, os pintores fazem tintas e pintam. Os arquitetos sem dinheiro não fazem nada. Sem dinheiro só há projetos de arquitetura. Estou preocupado, especialmente porque em Portugal há este mito que não se ganham eleições sem betão. Por isso as câmaras têm de fazer alguma coisa: se não houver dinheiro fazem um fontanário, se houver fazem uma piscina, que é o sonho de qualquer autarca. Isso preocupa-me porque eles não resistem à vertigem e depois fica tudo pendurado e o país endividado.
Como lhe aconteceu em relação ao Estádio de Braga, projeto pelo qual ainda não recebeu todo o pagamento?
Sim, ainda estou à espera de receber uma parte, mas isso vai-se resolver, provavelmente em outubro. Está em tribunal há muitos anos. Com a câmara municipal que é a proprietária do estádio. Mas as relações com a câmara são boas, mesmo no próprio tribunal nós tratamo-nos bem, o presidente diz que gosta muito de mim e eu também não tenho nada contra uma pessoa que me deu um estádio para fazer. Agora, acho que devo receber mais porque houve mais obra e os empreiteiros receberam mais. Só que, para os empreiteiros receberem mais porque construíram mais é porque alguém desenhou mais. E esse alguém fui eu.
Que valor está em falta?
Não sei. Já duplicou por causa dos juros. Mas é um valor meu, do engenheiro e de vários laboratórios de engenharia no Canadá e Dinamarca. É muito dinheiro.
Todas essas questões financeiras estão a colocar em risco as gerações futuras? Temos uma geração de formados em arquitetura que nunca sequer tiveram a oportunidade de ser arquitetos?
Sim, mas isso houve sempre. Ser arquiteto não é para todos. Mas agora há ainda menos oportunidades porque não há obra e há arquitetos a mais. Há 22 mil arquitetos em Portugal e todos os anos se formam mais dois mil, alguns vindos de escolas muito más. Todos os dias me batem à porta a pedir emprego, mas não posso fazer nada, já tenho vinte e tal pessoas.
Quando duas das suas três filhas lhe disseram que queriam ser arquitetas disse-lhes para mudarem de ideias?
Não. Uma queria ir para pintura ou escultura e um dia chegou a casa a dizer que se tinha matriculado em arquitetura. É muito autónoma, agora vai para Veneza dar aulas. A outra, mais velha, trabalhava com um arquiteto que começou a ter dificuldades e então veio trabalhar comigo. Mas não é fácil, sou mais exigente com ela do que com os outros arquitetos. Tenho ideia que sou um bocado injusto, mas não quero que digam que é filha do patrão.
Em 2011, quando venceu o prémio Pritzker, comentou que isso lhe traria muita pressão. Sentiu essa carga?
Senti, senti. Foi difícil, mas já passou. Mas também não sou parvo: o balanço entre ter ganho ou não ter ganho é muito positivo. Numa época de crise, em que ninguém tem trabalho, se tenho trabalho lá fora é porque ganhei o Pritzker, não foi porque foram às Páginas Amarelas à procura do meu nome. Ainda por cima na Europa há poucos Pritzkers! Por isso o prémio deu-me abertura a um conjunto de trabalhos que estou convencido que não teria tido se não tivesse ganho. E mesmo cá deu-me muitos projetos, não pelo Pritzker, que nem sabem o que é, mas porque me reconhecem porque estive a falar com o Obama. Mas, por outro lado, os erros também passaram a ser enfatizados: “Então você ganhou o Pritzker e a porta do chuveiro deixa passar água?”, é uma piadinha que me fazem. E depois ainda há aqueles casos que me convidam para desenhar uma obra, não por ser eu, mas por eu ter ganho o prémio e depois põem uma placa a dizer que foi desenhado pelo Pritzker 2011. Preferia que pusessem Eduardo ou Souto de Moura. Às vezes sinto-me despersonalizado.