Vasco Araújo. O ser humano em oito partes

Vasco Araújo. O ser humano em oito partes


A Cinemateca Portuguesa passa hoje em revista um conjunto de oito filmes do artista plástico Vasco Araújo. O primeiro é “La Schiava”, em estreia nacional


“Quando eu cantava a ‘Aida’ a minha pele era o meu figurino”, disse já várias vezes Leontyne Price, soprano afro-americana celebrizada nas décadas de 1950 e 60 pela sua interpretação da personagem principal da ópera de Verdi que conta a história de uma princesa etíope tornada escrava pelos egípcios, a primeira negra a chegar a protagonista na Metropolitan Opera de Nova Iorque. “Está basicamente dada a justificação para que fosse tão boa a sua interpretação”, acrescenta Vasco Araújo, que tem justamente em “Aida” – e numa série de textos sobre a escravatura e o pós-colonialismo de Frantz Fanon, Edward W. Said, Serena Guarracino e a própria Leontyne Price – o ponto de partida para “La Schiava” (2015), seu último filme e primeiro dos oito que são hoje, a partir das 18h30, exibidos na Cinemateca Portuguesa, num ciclo dedicado aos filmes do artista.

Depois deste, filmado entre a sala de guarda-roupa do São Carlos e o Finalmente, e que tem como protagonista a transformista Jenny Larrue e é narrado por Billy Woodberry, realizador do L.A. Rebellion (Los Angeles School of Black Filmmakers), vêm “Hipólito”, “O Jardim”, “About Being Different”, “Hereditas”, “Ínsula”, “Telos” e “Vulcano”, numa sessão com mais de duas horas que fecha o círculo iniciado há dois anos com a exibição de outros oito filmes, a convite da comissária Ana Isabel Strindberg.

“La Schiava”, que ainda só foi visto em dois museus de Bordéus e Buenos Aires e tem aqui a sua estreia em Portugal, será mesmo o melhor ponto de partida para entrar no universo de Vasco Araújo, entre os problemas do pós-colonialismo, a identidade de género e a luta pelo poder, numa obra que se estende  da escultura, fotografia e instalação à performance e ao vídeo. Porque reúne tudo, explica: “as questões do género, do colonialismo e do pós-colonialismo, da escravatura, está tudo aqui, e está porque é sobre o outro e como é que nós nos vemos no outro.” 
No fundo é sobre isso toda a sua obra. “É sempre o outro.” Até quando se fala de poder. “Nós só nos revelamos enquanto seres humanos em situações drásticas e o poder é uma delas. O nazismo só veio demonstrar no fundo o quão drástico o povo alemão consegue ser. Como outros, é uma condição do ser humano”, diz Vasco Araújo. “Definimo-nos sempre em espelho, nesta relação com o outro, eu só existo porque há um outro, existimos sempre em confronto e sempre numa relação de desejo e repulsa, que depois tanto dá fobias como dá amor, as duas coisas, que estão em paralelo.”

Aqui o outro será esta “Aida”, de Verdi. E ninguém melhor do que Jenny Larrue para ser Aida (ou ela própria?), como foi Leontyne Price, que na verdade só o foi pela primeira vez em substituição da italiana Antonietta Stella, que tinha sofrido de uma apendicite. “Não sei se ela terá bem consciência disso – eu adorava que não tivesse porque seria muito melhor para a vida dela – mas a Jenny pode concentrar todas as fobias da nossa sociedade”, diz Vasco Araújo. “Pela cor da sua pele, pelo género, pela sua opção sexual, por ser mulher… por tudo. Ela potencia tudo o que quero mostrar.”