O Chiado é hoje em dia uma das zonas de Lisboa com mais turistas – centenas de tuk-tuks passeiam-nos por algumas das ruas mais antigas da capital, onde tiram selfies à frente de todos os edifícios históricos. E a história não se faz apenas de monumentos, mas também de conversas, tertúlias, cafés e pastelarias. E uma das mais antigas é a Benard.
Aberta em 1868 na Rua do Loreto, perto do Calhariz (só mais tarde é que viria a ocupar o edifício da Rua Garrett), a Pâtisserie Benard deve o seu nome ao seu fundador, Élie Bénard, um homem que, graças ao trabalho desenvolvido ao longo dos anos, chegou a ser agraciado com a Ordem de Cristo, atribuída pelo rei D. Luís.
A história dos confeiteiros e o (merecido) descanso ao domingo A classe dos confeiteiros chegou a fazer parte da Casa dos Vinte e Quatro, um órgão deliberativo da administração municipal de Lisboa, composto por representantes de ofícios e guildas e criado pelo Mestre de Avis. Esta é extinta com a instauração da monarquia constitucional, em 1820, mas é entretanto estabelecido um regime de ofício: “Cada profissão era regida por leis próprias, aplicadas por autoridades próprias sujeitas à fiscalização e superintendência das autoridades municipais. O regulamento interno da profissão referia-se ao conhecimento do próprio ofício, à moral social, à disciplina interna, ao exame dos candidatos a mestres, à instituição das autoridades e aos deveres. Eis, fundamentalmente, a matéria do regimento do ofício”, explica Marcello Caetano, citado na obra “As Antigas Corporações dos Ofícios Mecânicos e a Câmara de Lisboa”, de Franz-Paul Langhans. O dos confeiteiros foi aprovado pouco tempo após a Restauração.
Mas no final do século xix, a classe não quer apenas um organismo que dite as regras internas e assegure a harmonia entre trabalhadores do mesmo ramo – exige também uma associação que seja responsável pela representação coletiva dos confeiteiros perante outras instituições. É, segundo Maria Augusta Montes Fortes, atual dona do estabelecimento, graças ao fundador da Benard que D. Manuel ii aprova os estatutos desta associação em 1908.
Um dos filhos de Élie, Casimiro Bénard, está também envolvido numa das grandes mudanças no setor: em 1908, este homem lidera o processo que visa a alteração dos horários de trabalho, fixando o descanso obrigatório dos trabalhadores ao domingo e, consequentemente, o encerramento de todos os estabelecimentos naquele dia – excetuando os estabelecimentos industriais cujo encerramento pudesse provocar grandes alterações na distribuição ou na qualidade dos produtos.
Um sítio para senhoras Em 1902, a Benard deixa a Rua do Loreto e instala–se na Rua Garrett, espaço que ainda hoje ocupa e que em tempos pertenceu à Pastelaria Gratidão, especializada em frutas cristalizadas. Um anúncio de 1903 descreve a Benard como um local com uma “grande variedade em doce de todas as qualidades. Grande sortido em caixas de fantasia com frutas cristalizadas e chocolates. Serviço de chá, café, leite e chocolates”. Em 1914, a revista “Ilustração Portugueza” noticiava as alterações na decoração do estabelecimento, destacando o facto de a Benard se ter tornado “o ponto escolhido da boa sociedade de Lisboa para as suas reuniões, sendo o seu proprietário, pelas belas qualidades que possui e dotes de inteligência que o distinguem, merecedor de todas as simpatias que lhe são dispensadas”.
Em 1926 é obrigada por lei a deixar o nome Pâtisserie, passando a chamar--se Pastelaria Benard, mas o requinte e o bom gosto que imperavam, que davam nas vistas na capital e chamavam a atenção das elites que por ali passavam, fez com que a mudança de nome não passasse apenas disso mesmo: uma pequena mudança.
Nos anos 20, não passaria pela cabeça de uma senhora dirigir-se a um café e entrar no estabelecimento sem a companhia do marido. A Benard tornou-se precisamente o espaço que as mulheres não tinham vergonha de frequentar sozinhas, podendo conversar com amigas e saborear alguns dos doces fornecidos pela prestigiada casa. Os cronistas da altura referiam o facto de uma ida à Benard ser um evento importante no dia de uma senhora, que se vestia a rigor para passear pelo Chiado e tomar o seu chá na Benard.
Os homens costumavam passar os seus momentos de lazer nos cafés e não nas pastelarias, mas, segundo Maria Augusta Montes Fortes, a Benard era também frequentada por vários cavalheiros, “atraídos pela fama dos seus produtos e quiçá ‘vistas’, dando à sala um ambiente de maior urbanidade e distinção”.
Um banquete para os reis Nos anos 40, a Benard, bem como a Pastelaria Marques, é adquirida por Manuel José de Carvalho. Esta casa passa nessa altura a destacar-se pelos banquetes que organizava.
De acordo com o testemunho da atual dona do estabelecimento, foi a Benard que organizou o jantar aquando da vinda da rainha Isabel ii a Portugal. Tentámos saber os nomes de mais figuras ilustres que tivessem passado por esta pastelaria ao longo do século xx, mas pouca informação nos foi dada. Em relação às personalidades que ainda hoje frequentam o espaço, Maria Augusta prefere não revelar nomes.
A pastelaria foi comprada pela mãe da atual dona do espaço numa altura em que a Benard estava em decadência. Acabou por ser reabilitada e recuperou o estatuto que foi ganhando ao longo de quase 150 anos de história – uma casa requintada que faz parte da vida do Chiado e continua a fazer as delícias de muitos lisboetas e turistas.