Para quem tem a felicidade de ter a memória curta, valerá a pena lembrar que a reivindicação de um referendo para decidir da continuação do RU na UE era a principal (e única) linha programática do UKIP. Cameron, sensível ao histrionismo de Nigel Farage e pouco atento à realidade sociológica da migração do eleitorado Labour para o UKIP, decidiu apanhar a luva atirada por Farage e embarcar na promoção de tal referendo.
A campanha eleitoral tem permitido observar de perto o melhor da natureza humana. O Labour, que deveria apoiar a permanência na UE, tem um líder que está, nesta como noutras matérias, algures em 1970, no período de pré-adesão do RU, período durante o qual o partido era contra a adesão. Corbyn tem andado tão perdido na campanha que os apoiantes do Bremain desejam com veemência que não participe na mesma. Pelo Labour há quem espere que, com os resultados do referendo, chegue a certidão de óbito de Corbyn como líder sem que seja necessário aguardar pelas próximas eleições.
Qualquer que seja o resultado do referendo, os Tories darão rédea solta à balcanização do partido. Se o Bremain ganhar, Cameron irá defenestrar a metade do governo que fez campanha pelo Brexit, ao mesmo tempo que muitos Tories tentarão afastá-lo do cargo de PM, lembrando que o referendo foi “self- -inflicted pain” por Cameron, que já havia anunciado que não se recandidataria a um terceiro mandato. Se o Brexit vencer, Cameron já não será PM na noite de 23 de junho. Boris não quererá suceder-lhe sem um banho lustral nas urnas que o legitime como líder, afastando a imagem do golpista que surfou o referendo para chegar ao poder e promoveu a guerra civil “blue on blue”.
Qualquer que seja o resultado do referendo, sairá reforçada a possibilidade de um novo referendo na Escócia e de este ser ganho pelos independentistas, sendo provável que o País de Gales vá pelo mesmo caminho. Se o Brexit ganhar, os referendos para desunir o Reino serão convocados até ao final do ano.
Ainda antes do referendo britânico, assistimos à multiplicação das taxas de juros negativas a 10 anos nos títulos de dívida alemã, muito contribuindo para convencer de vez os alemães de que devem voltar ao marco. Mais do que um Grexit do euro, estamos muito próximos de um Ausgang alemão.
Qualquer que seja o resultado do referendo britânico, o efeito de contágio é garantido e outros Estados irão submeter a referendo matérias várias que estão reguladas pelos tratados a que se vincularam.
Antes das eleições de 2017 em França e na Alemanha, nem Hollande nem Merkel estão minimamente disponíveis para se ocuparem da UE. Em caso de Brexit será marcado à pressa um Conselho Europeu no qual os speechwriters de serviço tentarão agrafar umas frases grandiloquentes sobre o futuro da Europa a meia dúzia de medidas que façam de eco: um Erasmus plus; um reforço da agência Frontex e do patrulhamento da fronteira externa da UE; um comissário europeu itinerante que passe os dias da semana em périplo pelas capitais dos agora 27 Estados--membros, “très à l’écoute des citoyens européens”.
Em caso de Bremain, o Conselho Europeu de junho e os speechwriters de serviço farão exatamente o mesmo que se descreve no parágrafo anterior.
Europa, verão de 2016. Que reste-t-il de nos amours?
Escreve à sexta-feira