Questionado por uma amiga sobre qual a melhor forma de ler Montaigne, Flaubert respondeu: «Não leia, como as crianças o fazem, para se instruir. Leia para viver.» E, no entanto, iniciados na torre de um castelo isolado na Gasconha, os Ensaios de Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) são, antes de mais, o testemunho de alguém que acredita estar próximo da morte e para quem, numa primeira fase, «filosofar é aprender a morrer». Aos 38 anos, após ter assistido à morte de cinco das suas seis filhas, do grande amigo Étienne de la Boétie (que lhe doou a maioria dos mil livros guardados na torre) e do irmão (devido ao embate de uma bola de ténis na cabeça), Montaigne quer cortar laços com tudo menos a leitura e a escrita, dedicar-se em exclusivo ao repouso «no seio virginal das Musas, em calma e a segurança». Isso mesmo deixa expresso numa das inscrições latinas que manda gravar na parede e no teto da biblioteca onde acredita que irá passar o resto dos seus dias. Apesar disso, o escritor viverá mais 21 anos, voltará a sair da torre (passados dez anos de reclusão) e até a assumir funções públicas (será presidente da câmara de Bordéus), a viajar e a experimentar o mundo em pleno. Os Ensaios tornar-se-ão o espantoso testemunho de vida de um homem cuja paixão maior foi seguir somente a sua livre vontade. Influenciarão gerações de autores, de Shakespeare e Flaubert a Virginia Woolf, e, em particular, um escritor e biográfo judeu, Stefan Zweig (1881-1942), conduzido ao suicídio pelas circunstâncias do seu tempo.
Em Fevereiro de 1934, por fim convicto da proximidade inevitável da barbárie, o austríaco Stefan Zweig (autor então muito respeitado por toda a Europa) contraria a sua natureza hesitante e parte para o exílio (primeiro em Londres e nos EUA, depois no Brasil). Escreve ao amigo Romain Rolland: «É preciso começar uma nova vida, retirar-me para dentro de mim mesmo para servir os outros.» Pacifista, servirá os outros através da prossecução da escrita e do culto da arte e do intelecto como formas superiores de ligação entre os homens. Oito anos depois, Zweig e a segunda mulher, Lotte, são encontrados mortos no seu bungalow, em Petrópolis, devido a uma overdose de barbitúricos. No outono anterior, o escritor terminara a autobiografia O Mundo de Ontem (Assírio & Alvim), enquanto redescobria Montaigne num volume poeirento dos Ensaios (que lera pela primeira vez aos 20 anos) e lhe dedicava o último dos seus ensaios biográficos: Montaigne, de cerca de 90 páginas, recém-editado pela Assírio & Alvim. Nunca saberemos até que ponto as ideias do pensador francês lhe serviram de consolo final ou de estímulo para pôr fim à vida.
«Para compreendermos a arte e a sabedoria da vida de Montaigne e a necessidade do combate que travou para se tornar ‘ele próprio’, o combate mais necessário do nosso mundo espiritual, […] é preciso que, também nós, tal como ele, tiremos as conclusões de um destes horríveis retrocessos da Humanidade que se seguem a um dos mais magníficos progressos.» Nas primeiras páginas da biografia que lhe dedica, Zweig enaltece Montaigne como o arauto mais veemente da liberdade individual e da capacidade de nos mantermos fiéis ao nosso «eu nu», principalmente em momentos históricos críticos.
Os Ensaios terão nascido da vontade de fuga em relação a um mundo cujas intolerância e violência defraudaram as esperanças trazidas pela Renascença. Montaigne, neto de um comerciante de peixe e de um corretor judeu, educado no espírito humanista (o pai insistia em que a criança fosse despertada ao som de música, instruída exclusivamente em latim e através de um conhecimento livresco), assiste horrorizado à guerra civil e, «há muito desgostoso com a escravatura dos cargos públicos e da corte» (Zweig), decide isolar-se para procurar alguma verdade dentro de si e dos livros. Pergunta-se: «Como salvaguardar o mais profundo da minha alma que só a mim pertence, a minha alma, a minha saúde, os meus pensamentos, os meus sentimentos, do perigo de ser sacrificado à loucura dos outros, a interesses que não são os meus?» Os seus instintos não são altruístas. Tal como explica o biógrafo, revendo-se com toda a certeza no perfil do biografado: «Montaigne é inimigo declarado de qualquer responsabilidade. Quer sempre escapar às decisões. Sábio numa época de fanatismo, procura a solidão e a fuga.»
Stefan Zweig, por seu turno, é, antes de qualquer outra coisa, um idealista, um crente fidelíssimo na utilidade das humanidades e um cultor do espírito intelectual e da cultura animi. Desde cedo, coleciona memorabilia de grandes criadores (Mozart, Beethoven, Goethe, Kafka, Thomas Mann, entre muitos outros; a sua coleção notável de manuscritos integra hoje o Acervo de Teatro da Biblioteca Nacional da Áustria) e escreve biografias históricas e literárias, nas quais deixa transparecer uma paixão genérica pela arte e pela cultura e várias identificações individuais estreitas. Biógrafo de Maria-Antonieta, Erasmo, Balzac, Dickens, Dostoiévski, Fouché, Romain Rolland, Kleist, Holdërlin ou Nietzsche, concentra-se na psicologia de cada um deles, revelada em momentos decisivos, narrados com sensibilidade de romancista. Sobre Joseph Fouché, por exemplo, diz ser um «traidor nato, miserável, intriguista, de escorregadia e retilínea natureza, trânsfuga profissional, alma mesquinha de esbirro, abjeto, amoral…», mas, ao mesmo tempo, o «caráter mais interessante do seu século», um génio tão peculiar que atemorizou Napoleão. Interessa-lhe a análise (não judicativa) e a partilha pedagógica dos casos de homens exemplares, que servem como testemunhos especialmente importantes em tempos sombrios. No ciclo mais filosófico de biografias (de Triunfo e Infortúnio de Erasmo de Roterdão, de 1932, e Castélio contra Calvino, de 1936, a Montaigne), estabelece uma analogia entre a Europa das guerras religiosas, no século XVI, e a Europa em ruínas dos anos 1930, e compõe «um requisitório críptico contra o nazismo» (Jean-Jacques Lafaye).
Um amigo de Zweig terá dito um dia que, de todas as vezes que o encontrava, ele se comportava como se tivesse algures uma mala preparada para partir. O próprio escritor explicou nas memórias que a sua vida foi sendo determinada «pela sensação curiosa de que tudo era apenas temporário». Também Montaigne, ao concluir os primeiros dois volumes dos seus Ensaios (publicados, em conjunto e com grande sucesso, em 1580), constatara que nada é estável ou perene. A sua reflexão, levada a cabo sob a forma de auto-exposição de caráter, testemunhava cada vez mais a realidade complexa e imprevisível da vida e a natureza ondulante e vária do Homem.
Primeiro escritos sem outra intenção que a de satisfazer o auto-esclarecimento do seu autor, os ensaios vão-se tornando progressivamente uma obra também destinada aos outros e, ainda que testemunhando as observações e considerações de um homem só em busca do essencial da sua experiência, assumirão um âmbito universal. Num segundo momento, o autor refundirá os dois primeiros volumes, acrescentando-lhes outros, revendo-os e apurando-os até à morte, em 1592. Explica Zweig: «De um modo geral, é realmente verdade que a primeira versão dos Ensaios, que diz menos da sua pessoa, de facto, diz mais. É aí que está o verdadeiro Montaigne, Montaigne na sua torre, o homem que se procura a si mesmo. Há nele mais liberdade, mais sinceridade. […] A princípio, queria reconhecer-se a si próprio, depois quer mostrar quem é.» Ainda assim, encontramos sempre na base do que escreve a convicção profunda de que é infrutífera e inútil a procura de convicções definitivas. Esta limitação ou modéstia epistemológica traduz-se no lema «Que sais-je?», a única inscrição em francês gravada na biblioteca da torre. Tal como salienta o filósofo, ensaísta e poeta espanhol Félix de Azúa, a constatação central dos Ensaios é a de que tudo flui para o nada, a verdade é essencialmente inconstante e esse deve constituir o tema de estudo mais importante de todos.
Sendo uma conversa do autor consigo mesmo e com os autores que leu, os Ensaios são como que uma autobiografia da mente, e de uma mente em constante movimento e mudança. Traduzem o que Zweig indica como uma fraqueza que se transforma em força. Montaigne, «ora parece epicurista, ora estoico, ora cético»: «Ele é tudo e nada ao mesmo tempo, sempre outro e sempre idêntico. É a busca que constitui o [seu] prazer particular […] não a descoberta.» A sua independência intelectual alimenta-se desta ausência de dogma, lei ou sistema. O seu estilo é, por seu turno, o de anotação livre de pensamentos, próximo do que, tão mais tarde, se apelidará de stream of consciousness (corrente de consciência). Como destaca o biógrafo, Montaigne «insiste, não sem alguma vaidade, no facto de escrever mal, de ser negligente, de saber pouco de gramática, de não ter memória e de ser totalmente incapaz de exprimir o que verdadeiramente quer dizer.» A expressão livre do «eu» constitui o seu principal propósito e o elemento unificador dos pensamentos que inscreve no papel. Os Ensaios revelam-se, assim, uma tentativa de representação da consciência humana. E, tal como defendeu Voltaire, pintando-se a si mesmo, Montaigne acaba por pintar com especial vitalidade a natureza humana.
Montaigne, biografia curta, escrita no tom elegante e subtil de Stefan Zweig e publicada postumamente (a primeira edição é de 1960), testemunha o paralelo entre dois espíritos superiores e distintos que procuraram resistir à desesperança do tempo em que lhes coube viver. Zweig enaltece o pensador francês pela forma como soube construir uma cidadela interior e, por fim, cultivar a vida como um propósito e um fim em si mesma. Face à opção final do escritor austríaco pelo suicídio, a sua homenagem torna-se ainda mais pungente e um apelo muito especial, como o são também os Ensaios, ao humanismo e à tolerância.