Euro’16. O mundo está virado ao contrário e os hooligans agradecem

Euro’16. O mundo está virado ao contrário e os hooligans agradecem


Três russos foram ontem condenados entre um e dois anos de prisão por violência em Marselha, depois dos confrontos com adeptos ingleses que assombraram a primeira semana do Europeu. Já foram detidas 323 pessoas neste campeonato


Já se esperava que o Euro’16 em França fosse tudo menos um evento pacífico. As cheias, o terrorismo e as acusações de racismo que pairavam sobre a seleção gaulesa deixavam antever um Europeu de futebol conturbado. As medidas de segurança apertaram, o governo francês prolongou o estado de emergência no país e os adeptos sabiam que, apesar da vontade imensa de apoiar as suas seleções, não teriam propriamente dias sossegados. No entanto, nada fazia crer que o maior problema até agora deste Europeu fossem os confrontos entre adeptos. Ou, por outras palavras, a invasão dos hooligans, especialmente dos ingleses e russos, protagonistas de um filme de violência que está a manchar o campeonato da Europa em França.

Ao todo já foram detidas 323 pessoas, dos quais 196 ficaram sob custódia, como divulgou o gabinete do ministro do Interior francês, Bernard Cazeneuve. O presidente da associação de adeptos da Rússia, Alexander Shprygin, vai ser deportado para o seu país. Juntam-se a ele mais 19 cidadãos com nacionalidade russa que fazem parte de um grupo de 43 que foram detidos anteontem durante uma viagem de autocarro de Marselha para Lille, onde iriam assistir à partida entre a Rússia e a Eslováquia (1-2), como avançou ontem a BBC. Três desses elementos foram mesmo condenados de um a dois anos de prisão, como noticiou a France Press – já antes, adeptos ingleses tinham sido condenados de dois a três meses de prisão e com a proibição de regressar a França nos próximos dois anos.

A UEFA já tinha avisado a Rússia e a Inglaterra, que se defrontaram no passado sábado (1-1) no Estádio Vélodrome, em Marselha, com o risco de expulsão – os russos estão quase com um pé fora depois de terem recebido ordem de expulsão com pena suspensa, caso se registassem mais incidentes. E foi precisamente aqui que tudo começou.

As ruas de Marselha tornaram-se um campo de batalha, com tochas, vidros e petardos a serem objetos comuns lançados pelo ar. Cerca de 35 pessoas ficaram feridas e a polícia teve mesmo de recorrer a gás lacrimogéneo para parar o verdadeiro cenário de violência criado, que resultou em vários feridos e hospitalizados.

Os episódios sangrentos continuaram a alastrar durante a semana, de noite e de dia, com os dois lados a provocarem-se mutuamente, envolvendo-se também com a polícia, já que anteontem foram detidas 36 pessoas, na maioria ingleses, desta vez a uma distância de apenas 30 quilómetros. E porquê? Porque a Inglaterra venceu ontem o País de Gales por 2-1 em Lens, que fica a 30 quilómetros de Lille, cidade onde os russos perderam frente aos eslovacos. A pouca distância forneceu a oportunidade para novos confrontos.

Há hooligans militares Para perceber este fenómeno, é preciso primeiro entender quem o pratica. “Uma parte destes russos que cometeram as agressões são militares.” Esta é a definição que Ronan Evain, doutorado em Ciências Políticas e especialista em grupos violentos, que explicou como funcionam hoje em dia os hooligans ao jornal espanhol “El Mundo”. Evain diz ainda que o termo “hooligan” não é o adequado para falar dos russos de Marselha. “Estão treinados e são organizados, para vir ao Euro organizaram-se em vários grupos de várias equipas [Lokomotiv de Moscovo, Spartak de Moscovo, etc]. Na Rússia juntam-se para combater nas ruas, aqui fazem caça aos hooligans. Para eles é como um desporto. Já os ingleses sempre foram hooligans, embebedam-se, não têm qualquer organização”, garante. E o tipo de pessoas que o praticam também se alterou bastante, bem como as regras no país de leste, um dos com as leis anti-hooligans mais restritas do mundo. “Muitas pessoas praticam boxe ou artes marciais mistas, e os hooligans russos praticam um estilo de vida saudável muitas vezes, e que agora evitam o álcool”, descreveu o jornalista Andrei Malosov, citado pela BBC.

Por outro lado, os cerca de mil hooligans ingleses que tiveram autorização para seguir a sua seleção não estão, no entanto, isentos de culpa como se verificou, até porque são uma referência para os seus “homónimos” no resto do mundo. Tornaram famosos a partir dos anos 70 até aos anos 90, período política e economicamente instável, onde a sua reputação ficou conhecida como a “Doença Inglesa”. Esta onda de violência obrigou o governo britânico a controlar de forma severa o fenómeno: banir a venda de álcool, os cânticos racistas e barrar a entrada a adeptos com um comportamento inadequado tal como iniciar um maior policiamento nos estádios e nas ruas.

Esta cultura de violência foi posteriormente copiada para outros palcos internacionais, como a Polónia. “No início da transformação política da Polónia em 1989, a violência era uma das características mais distintivas da cultura do futebol no país”, como escreve o jornal norte-americano “The Washington Post”, que pediu ajuda a três investigadores que afirmam que “algumas das piores formas de violência dos hooligans que ainda permanecem na Europa estão ligadas ao período da queda do Muro de Berlim”. Esta nova vaga de violência pode mesmo marcar uma nova era para o hooliganismo, porque o mundo está outra vez a passar por uma crise económica, social e política tão ou mais grave do que a desse período.

O receio está agora no efeito de propagação, ou seja, de que mais adeptos de outros países sigam os homens de leste e da terra de sua majestade. É que as autoridades francesas estão mais preocupadas com eventuais ataques terroristas, o que deixa os hooligans completamente livres de circularem no país. E isso já aconteceu: alemães e ucranianos defrontaram-se em Lille e polacos e irlandeses protagonizaram alguns desacatos em Niza

Esta pode ser a última oportunidade na próxima década para muitos destes homens puderem fazer aquilo que mais gostam, já que o Euro 2018 será na Rússia e o Mundial de 2020 no Qatar, dois países onde a polícia, que ao contrário das autoridades francesas que estão focadas em possíveis ataques terroristas, não será certamente tão macia.