"Não toques, nem despertes, o que aí está: a ignorância deste agora ou o peso, tão frágil, melhor, do seu próprio ser, a quem a lembrança, inadequada, não acede, porque não é desse pão de eternidade que come a memória”. Isto quem o escreveu foi Juan José Saer. O balanço entre uma escrita que, vacilando, alcança a maior precisão, serve de aviso contra o despudor de se pôr atrás de frases a rendilhar cruezas para passar a imagem da sábia compunção que não passa do outro lado do espelho da tonta alegria com que alguns gritam a sua presença.
Se uns têm a morte pouca de cada dia, outros reservam julgamento e também dispensam a publicidade. A diferença, vai-se ver, e é clara. Quando Luís Falcão abre o seu segundo volume de poemas – publicado este mês já postumamente – e se refere ao dia em que a morte se lhe dirigiu como aquele dia em que “a essência sagrada/ das coisas se quebra” o que se pressente é um cessar da música, e embora todas as notas soem como dantes, o que antes era sentido como uma consonância agora abre uma perspectiva de desagregação: “um dom [que se tornou] inacessível”.
É assim que, a partir dos seus detalhes, a vida é toda ela estranha, como se um texto numa língua que foi nossa, que falámos fluentemente, e, de súbito, se tornou estranha, “outra língua”, abrindo-se um capítulo dedicado à “lenta decifração/ do que te devora”. Tudo vacila e é terrivelmente preciso. Em versos que se bastam com os dedos de uma mão, e menos vezes os das duas mãos, este é um livro que a cada regresso se lê com um maior pudor, à medida que ganha peso e se afunda em nós esta linha de pedras deixadas pelo autor. Fala-nos no “sopro desmedido/ de um apelo inominável”, “uma voz que se confunde com a noite”. “Um destino que sucumbe/ ao silêncio incandescente de outra imensidão.”
Aqui a morte sabe a um abandono forçado da paixão, como se, sujeito a “uma solidão desordenada” restasse assistir ao “desmoronamento imperturbável de uma graça”. Para lá da loquacidade suplicante dos que da morte fazem um culto, aqui a luz que morre é também surda para tentações furiosas, e resta a coragem de não se converter a qualquer delírio, não entregando também as armas da lucidez.
O que fica? Talvez o “vislumbre de uma ferida de luz que nos trespassa”, “uma outra legibilidade do mundo”. De qualquer modo, são os sinais que antes nem nos mereciam atenção os mesmos que agora selam “numa indiferença discreta/ a tua queda no esquecimento”. E é isto talvez o que da morte, olhada de perto, foi dito com maior acume, indo além da “espessura de um remorso”, os gestos sucessivos com que o mundo é dividido e entregue “noutras mãos”. Porque a memória que cabe nos versos não come do pão da eternidade, mas de uma vida que, no fim, se sente “perdendo o rasto do que ardeu”, e por isso nos faz crer que teve a paixão suficiente para se despedir como se o mundo, ainda que brevemente, lhe houvera pertencido na sua inteireza.
Luís Falcão, "Bruma Luminosíssima" (Edições Artefacto, Maio de 2016)
50 páginas, 8€
No dia em que a essência sagrada
das coisas se quebra
olhas a chuva nas flores das magnólias
e a morte
principia sobre ti o seu trabalho
Amanhã já as folhas
terão caído
desfigurando
cuidadosamente
uma voz que se confunde com a noite
Encontram-te uma veia
e expõem-te aos venenos
sepultanto no teu sangue
as nervuras
de um horror instransponível
um brilho de chumbo e finitude
contorcendo-se, sobrepondo-se
a uma fractura
definitivamente aberta à transparência
A casa fechando-se
sobre a vastidão da infância
infiltrações e humidades
entranhando-se
no tempo que te resta
a um canto
a correspondência interrompida
pressupostos inadiáveis
amontoando-se
sob o pulsar irredutível
de uma exigência de infinito