Uma melancolia indesmentível tomou conta dos portugueses na noite de terça–feira. A equipa que chegara a França de peito mais enfunado do que vela de galeão, como diria o ilustre dr. Topsius da Imperial Alemanha, não foi além de um empate no seu jogo de estreia contra a débil Islândia, muito encorpada, benza-a Deus, muito cheia de energia, mas inevitavelmente da segunda divisão de um futebol europeu que não parece ganhar nada com o apuramento a granel de seleções para a fase final de uma prova como esta.
Claro que os islandeses só são para aqui chamados porque conseguiram um resultado que ninguém esperava, e esse é o lado para o qual dormem melhor, mas se há culpas a apontar, essas vão direitinhas para a “equipa de todos nós”, incapaz de provar em golos a sua melhor qualidade e de tirar proveito de ter nos seus quadros o melhor jogador do mundo, embora muito dia sim dia não.
O “L’Équipe” de ontem não poupou Ronaldo. Na verdade, o grande jogador português, estrela maior do mundo da comunicação e da fofoca, topo dos topos do universo do tal viril desporto bretão, como gostava de dizer Gagliano Neto, famoso locutor brasileiro dos anos 30, está a correr o triste risco de, mais uma vez, não mostrar numa fase final de uma grande competição todas as qualidades que fizeram dele aquilo que é. E esse é um risco não apenas triste; é grave.
Uma força estranha… O meu amigo Jorge Palma, que tem jeito como poucos para lidar com as palavras, cantava: “Ai Portugal, Portugal! De que é que tu estás à espera?” De que está à espera este Portugal-de-todas-as-ambições para se impor no Europeu que estava programado para ser de sonho? Que força estranha é esta que o põe de mal com os outros e consigo próprio? Que lhe falta? Que medos o atormentam? Que atração é esta pelo pesadelo?
Convenhamos: depois de ter tido um início titubeante, assim muito tem-te não caias, a equipa portuguesa passou a dominar por completo as vertentes do jogo e chegou à vantagem com uma justiça menos discutível do que a de Inocêncio de Sá, esse personagem que Fafe deu ao universo das lendas da nossa terra. Manter essa vantagem contra um adversário que defendia com 11 homens dentro o seu próprio meio–campo deveria ter sido tarefa acessível para um conjunto tão ambicioso como as palavras do seu líder, Fernando Santos, deixavam entender. Infelizmente, não foi assim. Este Portugal tem “um pé numa galera e outro no fundo do mar”…
De um lado, aquela arrogância que gabamos aos outros e temos dificuldade em aceitar em nós mesmos, a capacidade de dizer em voz alta que somos bons, melhores do que a maior parte, e que essa qualidade nos permite encarar com naturalidade o peso das responsabilidades que nos põem sobre os ombros. Do outro, este “apequenamento” incompreensível que brota do fundo do peito no momento agressivo da batalha, da prova, da necessidade de transformar o verbo em factos. É aí que o futebol passa para o domínio da psicanálise. Seria quase de aconselhar-lhe uma visita ao n.o 19 da Berggasse, em Viena, casa do excelentíssimo Sigmund Freud…
Ano após ano após ano, Portugal surge nas fases finais de Europeus e Mundiais com a aura de uma possível surpresa, tal a qualidade, experiência e moral dos seus jogadores. Ano após ano após ano, os portugueses recebem pelas costas abaixo baldes de água gelada de desilusões. Que nos falta? Que nó se aperta na cabeça dos artistas que não são capazes de demonstrar em público, para milhões de pessoas em todo o universo, a bondade da sua arte?
Treinador e jogadores fizeram os possíveis para passarem uma imagem de mudança. Chega de trazer o desgosto às costas, como diz o Palma. Abriram o cofre das suas desconfianças e deitaram-nas para longe, para algures onde as levasse o vento. Para já, de nada serviu.
Não falta muito, apenas dois dias, para que Portugal volte a entrar em campo e decida frente à Áustria o futuro nesta competição para a qual veio carregado de sonhos. Sábado é tempo de renegar a maldição dos falhanços, dos desastres, e provar que quem joga deve aprender a perder e que nem sempre se pode esperar que a sorte venha bater à nossa porta. Uma vitória sobre os austríacos não abre apenas as portas largas dos oitavos-de-final, como deixa o primeiro lugar ali ao esticar da mão. Continuamos todos à espera. Portugal inteiro à espera. De quê? De que a seleção nacional saiba ser aquilo que é tantas e tantas vezes e o demonstre no palco no qual só os eleitos se mostram. Não há mais tempo a perder. Está tudo em aberto. Que Cristiano Ronaldo saiba comandar os seus amigos, os seus companheiros, “capitão da malta”, na revolta que não se vai ao fim da tarde como a dos putos de Carlos do Carmo.
É já aí, em Paris, cidade preferida de Eusébio, onde sempre era feliz.
Nessa Paris inquieta, intranquila, a violência em cada esquina, pronta, bruta e assassina. Há sempre Paris quando nada mais há.
Para Portugal há agora Paris no horizonte. Desde que não fique à espera. Se ficar à espera, ninguém o virá ajudar. O Palma sabia. Nós sabemos todos. É só preciso que, agora, eles também saibam.