Numa década, os portugueses passaram por várias fases em que tentaram moldar–lhes a visão ao que convinha. O consulado de Sócrates foi de miragens e visões. Ele era pontes, autoestradas, aeroportos e PPP para tudo. Um progresso alicerçado em dívida empurrada com a barriga e cheio de erros de avaliação. O resultado foi um estoiro monumental que pagaremos durante décadas. As paranoias políticas custam sempre biliões. Veja-se Angola e o Brasil.
Depois veio a fase das palas protagonizada por Passos Coelho, Portas e o inenarrável Vítor Gaspar. Foi a expiação. O caminho da suposta redenção foi traçado por uma troika financiadora, aliada a soluções neoliberais internas. O discurso era de autoflagelação e empobrecimento. Dizia–se que os portugueses tinham gasto demais, num enorme regabofe. Aplicaram-lhes uma correção de austeridade agravada por terem comprado uns frigoríficos, ido de férias para fora, trocado de carro e, em alguns casos, mudado de casa, recorrendo a empréstimos. Uns doidos extravagantes! A verdade era bem diferente. Além do faraónico Sócrates, na origem da desgraça estava um bando de vigaristas nacionais e mundiais a que chamavam banqueiros, que inventaram sistemas de especulação financeira e aprovaram projetos de compadrio na ânsia de comissões, sem olhar à racionalidade. Companhias como a PT foram destruídas para fazer mais-valias. A autoflagelação tinha a acompanhá-la duas ondas de tsunami. A primeira, de cortes a granel, mal medidos e recessivos, destruindo emprego, equilíbrio social, equidade, direitos adquiridos, saúde pública e milhares de pequenas empresas essenciais. Os portugueses que não emigraram convenceram-se da sua suposta culpa e aceitaram os cortes. A segunda onda foi a venda de tudo o que era bife do lombo a interesses externos. REN, EDP, Fidelidade, pedaços do BPN e a ANA, ficando os ossos por cá. Por pouco ia a TAP e, mesmo assim, está para se ver. A própria RTP voltou a estar por um fio. Safou-se de boa, pois a esta hora já não existiria. No tempo das palas, quem alertasse para a austeridade contraproducente era traidor à pátria, mesmo que viesse da mesma área ideológica. Quando viu o desastre, Gaspar fugiu para o regaço do FMI, deixando danos irreparáveis. Desses tempos fica como símbolo máximo do ridículo e do grotesco o relógio que Portas colocou no largo do Caldas para a contagem decrescente até à saída da troika, que nunca aconteceu e, aliás, ainda cá está numa versão de visita trimestral. O outro momento trágico-cómico foi a demissão irrevogável.
Hoje estamos na fase das lentes progressistas. Por mais que se meta pelos olhos dentro que a economia está de rastos, há quem não veja. Outros fingem não ver, como parece ser o caso de António Costa, que ganha tempo, esperando talvez que nos possamos safar se tudo correr mal na generalidade da Europa. Tem preferido isso a enfrentar de caras certos problemas. Apesar da alegre e positiva convivência que tem com Costa, o Presidente Marcelo já lhe diagnosticou um otimismo irritante que não lhe cura, apesar de saber muito de remédios. O pior do efeito das lentes progressistas está na visão do núcleo apoiante do governo, que tem origem numa extrema-esquerda intelectualizada do tipo chique que debita temas fraturantes a granel, num irrealismo que ignora o contexto português, europeu e mundial. A coisa chega a um ponto em que já há dirigentes históricos do Bloco de Esquerda preocupados com certos exageros. Esse núcleo delicia-se com conquistas teoréticas de direitos e regalias que ficarão inevitavelmente no papel. Há casos em que a desfocagem é alargada a outros setores mais moderados, o que é ainda mais grave. Verifica-se isso com o regresso às 35 horas e a ideia de que a decisão pode não trazer mais custos. Ou ainda com a notícia de que só com 338 admissões se vai alargar a mais 640 mil portugueses a cobertura de médicos de família. O ministro das Finanças traçou entretanto um cenário macro totalmente irrealista que mantém. O colega da Economia não existe. Eclipsou-se, deprimido, parecendo estar à espera de ser remodelado. Na Segurança Social e no IEFP, os candidatos à reforma e desempregados continuam a ser tratados abaixo de cão pela burocracia de Vieira da Silva, que é igual à anterior, com outra gente. Tudo isto enquanto diariamente se toma conhecimento de mais problemas no setor bancário, onde há reformas antecipadas só por se ter o colesterol elevado. Se fosse universal, era tudo a comer enchidos de manhã à noite. Noutro campo há a ideia de que Portugal vai escapar a sanções europeias. Se assim for, será por causa de Espanha e porque seria um precedente. A realidade é que ficámos fora dos objetivos no ano passado e a situação não parece nada estar melhor neste. É preciso ter consciência de que de nada serve olhar para a realidade através de lentes distorcedoras, sejam escuras ou progressistas. Não olhar para a estrita realidade pode trazer novamente o tempo das palas, ainda que com os protagonistas atuais. Quem duvidar que olhe para o que Tsipras está a fazer na Grécia.
Jornalista