O filme de apresentação do Portugal-Islândia que passava nos ecrãs do estádio antes do jogo começar mostravam fogo e gelo. A alusão era clara. Mas nem Portugal ardeu, nem a Islândia foi tão fria quanto isso. «I have a feeling that tonight is gonna be a good night», sublinhava uma das músicas oficiais deste Europeu. O mesmo devem ter pensado os cerca de 40 mil espectadores que encheram o Geoffroy Guichard com um entusiasmo transbordante.
Cristiano Ronaldo dizia-me na véspera, falando por SMS, que era o dia de «começar o sonho». Um sonho antigo para o enorme jogador português que viveu o seu primeiro Europeu com apenas 19 anos e já vai no quarto consecutivo, somando uma final, uma meia-final e uns quartos-de-final. Sabemos todos o que lhe falta, não é?
A «Equipa de Todos Nós», como lhe chamou um dia Ricardo Ornelas, mostrou desde início que queria ter a bola, deixando para os homens da ilha o futebol mais directo, o que não tardou a valer um grande sobressalto quando Bjarnason surgiu isolado frente a Rui Patrício e o obrigou a duas defesas consecutivas.
Fortes, rápidos, os islandeses estiveram à altura da situação e provaram durante muitos nacos deste jogo suculento que não devem à sorte a sua presença na primeira fase final da sua história. Mostraram igualmente conhecer bem as virtudes e defeitos desta equipa portuguesa e foram capazes de os por a nu. A partir dos 15 minutos, Portugal instalou-se no meio campo nórdico como vilão em casa de seu sogro. Sigthórsson, o mais adiantado dos islandeses começava a defender escandalosamente dentro do seu próprio terreno e Nani teve na cabeça uma oportunidade incrível a beneficiar de um lance de Ronaldo pela ponta esquerda. A defesa de Haldórsson com o pé foi de pura sorte, se é que a sorte tem alguma coisa que ver com o instinto.
Os lances de perigo iam surgindo, geralmente sempre através dos mesmos dois protagonistas, Nani e Ronaldo, com João Mário e André Gomes a trocarem de flanco um com o outro amiúde numa tentativa de abrir a concha de uma defesa reforçada e robusta. Curiosamente, foi em momentos de jogo aéreo que os portugueses criaram mais sustos ao adversário.
O golo de Nani, a concluir uma fuga pela direita pareceu resolver o mais complicado de todos os problemas desta equação islandesa. Mas continuava a ser fácil lidar com aquela massa branca de adversários muito unidos que faziam lembrar um enorme baleia branca dos mares do Norte onde crescem os mitos e as lendas da animais colossais.
Para onde vais Portugal? Pela hora do almoço já uma onda azul tomava conta da «cidade dos verdes», como chamam a Saint-Étienne por causa da Societé des Magasins Casino, pólo económico mais importante da cidade no início do século passado e cuja sociedade recreativa transportou a cor verde para o clube de futebol, a Association Sportive Saint-Étienne. Não há tantos islandeses como isso, pelo que o mais provável é estarem cá todos. Grupos juntaram a outros grupos na Place de Jean Jaurés, no centro, gritando a plenos pulmões: «Áfram Island!» (Força Islândia!) de forma bem audível, sendo de imediato correspondidos por grito idêntico vindo de alguma rua ou esquina onde estivessem compatriotas.
Aliás, a UEFA inventou para este Europeu uma coisa monstruosa chamada «Noisimeter» – um barulhómetro, se quiserem. O objectivo é pôr os adeptos de uma e outra equipa a berrarem como carneiros de forma a poder estabelecer-se quais os que fazem mais barulho. Ora batatas! É, no mínimo, deprimente. Mas o povo quer é festa e venha de lá a festa por mais estúpida que for.
Não confirmei se os islandeses fizeram, no estádio, mais barulho do que os portugueses. Entrava pelos olhos dentro que esta sua primeira aventura na fase final de uma grande competição está a ser vivida com um entusiasmo formidável. Pude, como pudemos todos, confirmar que Fernando Santos se manteve fiel a um onze do qual já não restavam muitas dúvidas. Meio campo bem preenchido e liberdade quase total para os dois homens da frente, Ronaldo e Nani.
Com a vitória da Hungria sobre a Áustria (2-0), no imperial encontro de Bordéus, um triunfo português partiria o grupo a meio e faria com que o Portugal-Áustria de Paris se tornasse decisivo para os austríacos. Pois bem, essa ideia terá de alguma forma entusiasmado os portugueses. Não chegou!
Portugal demorou a soltar-se. Lentidão excessiva nos lances ao centro do terreno só compensada pela movimentação contínua de João Mário e André Gomes, em trocas de flancos e em desmarcações para as costas dos laterais islandeses, Seavarsson e Skúlason, com Ronaldo a descair também com naturalidade para as pontas, deixando Nani no centro da defesa contrária (o inverso também foi acontecendo), estiveram na base do desfazer de um bloco muito denso e na explicação do golo de Nani que parecia atirar Portugal para os braços abertos dos oitavos de final.
Com a vantagem garantida ao fim de meia-hora, penso que ninguém pôs em dúvida o sucesso lusitano. Até porque defensivamente, a Selecção Nacional mostrou-se sempre muito coesa perante alguns atrevimentos adversários, sobretudo saídos dos pés de Bjarnason, esse mesmo que criou a primeira grande chance do encontroe viria a marcar o golo fatal aos 50 minutos.
Era preciso mostrar em campo a superioridade escrita em papel de seda e que tanto tem sido apregoada por uma equipa que veio para este Campeonato da Europa com declaradas e largas ambições. E se isso parecia ir acontecer, os primeiros minutos do segundo tempo lançaram dúvidas na cabeça de toda a gente. O golo de Bjarnason foi demasiado consentido e o jogo como que recomeçava.
Respondeu bem a selecção e tornaram-se menos irritantemente defensivos os islandeses. O movimentos ganharam interesse e o entusiasmo azul recrudesceu. Eis que finalmente se torna difícil tirar os olhos do relvado.
O tempo ia passando, depressa para os portugueses e lentamente para os rapazes da Islândia. Duas concepções diametralmente opostas de tempo, como diria Mário Filho, o homem que deu nome ao Maracanã.
A dúvida pairava sobre o Estádio Geoffroy Guichard… Seria possível contrariar a força dos ilhéus? A pressão aumentava. A pressão do ataque nacional e a pressão de um resultado com muito de desanimador. Havia que mudar algo na teimosia de lances repetitivos e na insistência individual de Ronaldo.
A primeira aposta de Fernando Santos foi Renato Sanches a vinte minutos do final. Tempo suficiente para se cavar uma vitória e tirar do congelador aquilo em que o jogo se tornara. Mas à medida que o tempo passava, os nervos iam tomando conta dos portugueses. Excesso de quezílias só beneficiavam os homens do Norte da Europa para os quais o resultado parecia agradar. Além de que, fisicamente se impunham – até o avançado-centro Sigthórsson dava água pela barba aos centrais portugueses, obrigando-os a uma atenção continua para que não servisse de cabeça os homens que o acompanhavam de quando em vez.
Entrou Quaresma, e ficou-se à espera de um truque do chapéu. Os minutos escoavam-se pela abertura da ampulheta como grãos de areia por entre os dedos. A alegre vitória que se esperava morria de encontro ao voluma gigante de um colosso branco e inamovível.
Se Portugal era o «Cavalo Negro» deste Euro, a selecção que corria por fora do leque dos grandes favoritos, a Islândia era uma «Baleia Branca» instalada no seu canto, cheia de espinhas para as esperanças de uns portugueses pouco imaginativos que agora enfrentam ainda maiores dificuldades.
Veremos para onde caminha esta selecção de todas as esperanças…