Confesso que sigo o trabalho de Filipe Melo – para um jornalista, há uma dimensão de boa história que está presente em todas as coisas. As aventuras de um adolescente que é apanhado pela justiça por ser dos primeiros hackers; que é obrigado pela justiça e a família a não tocar mais em computadores, o que o faz dedicar-se ao piano, tornando-se um excelente músico de jazz; que faz o seu primeiro filme, com que ganha um prémio do Fantasporto, com o dinheiro da entrada para a casa que lhe deram os pais; que batalha para exibir umas das melhores séries que passaram na televisão portuguesa, “Um Mundo Catita”; e que se volta agora para a banda desenhada, é boa em qualquer lado. Se a isso somarmos o imenso talento do diretor de arte argentino Juan Cavia e um livro fantástico que sai agora sobre a guerra colonial, temos motivos para uma conversa. Começamos, portanto, pelos “Vampiros”.
Como surgiu a ideia deste livro?
Filipe Melo – A ideia surgiu em 2008, já lá vão oito anos. Apareceu quando já estávamos a trabalhar em banda desenhada, mas eu tinha a aspiração de fazer um novo filme.
Disse numa entrevista que a banda desenhada é o cinema dos pobres.
FM – Tanto o Juan [Cavia] como eu – ele mais do que eu – temos bastante experiência de trabalhar em cinema. Neste caso, a ideia surgiu porque eu queria contar uma história sobre o medo. Uma história de terror.
Um bocadinho ao jeito de “O Coração das Trevas”.
FM – É impossível fazer uma coisa que se passe numa guerra sem esse tipo de referências. O próprio “Apocalipse Now” se baseia nisso para uma descida aos infernos. Neste caso específico, a guerra colonial começou por ser uma espécie de cenário e, pouco a pouco, o que nós descobrimos sobre a guerra colonial era tão forte que começou a ganhar mais espaço na própria narrativa, como se a própria guerra ou a própria Guiné e o Senegal fossem personagens. Mais a guerra e a selva.
Vocês enviaram o livro à filha de Amílcar Cabral?
FM – Fazer este livro foi um processo gradual de aprendizagem. Uma coisa que eu sabia é que a minha geração ignorava demasiadas coisas sobre a guerra e este período. Para resolver este problema, o que eu fiz foi ir investigando. Primeiro, de uma maneira mais convencional: com o documentário sobre a guerra do Joaquim Furtado, livros, relatos de ex-combatentes, alguns deles saídos no “Correio da Manhã”, e também li a biografia do Amílcar Cabral que está publicada pela Tinta da China, do historiador António Tomás [”O Fazedor de Utopias”]. À medida que eu lia a biografia dele fiquei fascinado pela personagem. Por causa da natureza obsessiva, que tanto eu como o Juan temos, tentámos falar com a filha de Amílcar Cabral. Nós queríamos muito falar sobre a guerra, mas não de um dos lados específicos. Temos dito muito uma coisa: é difícil falar de heróis numa guerra colonial. Há heróis na guerra? Sim, naturalmente, mas o herói de um lado será sempre o vilão do outro. Para nós, falar com a Iva Cabral, uma pessoa que esteve diretamente envolvida e filha de um dos grandes pensadores do que foi aquela mudança, foi um descanso. Pensei que ela nos ia apontar uma data de coisas que não faziam sentido no livro, mas as únicas indicações que ela tinha eram coisas muito práticas: falou-me, por exemplo, que nas bases do PAIGC não havia determinados tipos de lâmpadas.
Mudaram as lâmpadas do livro?
FM – Mudámos, deu-nos muitas dores de cabeça mudar essas lâmpadas.
Juan Cavia – Como nenhum de nós dois faz parte da geração que esteve em guerra e eu sou estrangeiro, não queríamos que houvesse ecos históricos de nenhum tipo. Se calhar, as lâmpadas era menos transcendentes, mas faziam parte de uma realidade e, como tal, não podíamos alhear-nos disso. Queremos que mesmo que as pessoas gostem ou não gostem desta história, não haja dados ou ecos que as distraiam de conseguir segui-la.
O facto de os dois terem vivido em países que tiveram ditaduras é e alguma forma relevante para a feitura deste livro?
JC – Para além disso, as nossas duas nações e os nossos pais viveram intensamente a ditadura e também a guerra em Portugal, a guerra colonial e, na Argentina, a das Malvinas. Isso cria uma geração de filhos que vivem em democracia herdando as vivências que os país tiveram da ditadura e da guerra, às vezes mais próximos destes acontecimentos e outras vezes mais longe. Mas as sociedades tiveram essa experiência.
O Filipe disse que há um esquecimento da guerra por parte das novas gerações. Na Argentina dá-se o mesmo com a guerra das Malvinas?
JC – Foi algo similar, porque a Argentina saiu demasiado humilhada do conflito. Envolveu–se nessa guerra de uma forma enganada. A guerra apressou o fim da ditadura e foi um negócio, como sucede com muitas guerras. Mas foi um trauma, de tal maneira que, na minha época de escola, se estudava aquilo que aconteceu de uma forma muito seca, somente os factos. Sem deixar espaço para uma reflexão. Era muito comum, até há pouco tempo, ver gente a pedir na rua porque tinha estado nessa guerra, pessoas para quem o que aconteceu os deixou completamente fora do sistema.
A guerra não é um exercício de bondade. No vosso livro, os dois combatentes acabam com asas de vampiro, como se os dois partilhassem toda a maldade da guerra. Mas não é possível dizer que nessa guerra havia um lado que tinha razão, logo que era melhor do que o outro?
FM – Eu tenho a minha visão de quem é bom e de quem é mau, mas quisemos no livro deixar espaço às pessoas para tirarem as suas próprias conclusões. Não quero falar especificamente sobre essa cena, porque tenho a minha resposta sobre o que aquilo significa para mim e para o Juan. Mas sobre a guerra, percebi que a grande maioria das coisas que eu sei sobre ela – não estou a falar desta em específico – aprendi em histórias de ficção e em filmes. Acredito que uma criança, hoje em dia, aprende mais sobre uma guerra a jogar ao Call of Duty do que a ler um livro. As pessoas têm uma paixão pela história, muitas vezes apresentam-lhes factos sem emoção. O que nós fizemos com este livro foi arranjar uma maneira mais pessoal de apresentar esta guerra sem chegar a conclusões. Nós queremos, como na capa do livro, que haja várias interpretações possíveis. O final está em aberto, não se percebe se o narrador é morto ou perdoado pelo guerrilheiro.
Mas o guerrilheiro tem uma arma na mão.
JC – No primeiro quadro ele tem uma arma na mão. Mas no último, a mão é outra. E o facto de ele sonhar no início com a situação é um facto concreto, ajuda a que o final seja aberto. Podia dizer–se que estava louco, mas ele sonha mesmo com essa situação. A história está trabalhada para permitir ao leitor pensar sobre ela e construir o seu final. É construída para uma leitura linear como para uma análise mais profunda do leitor.
Como é que vocês se conheceram?
FM – No Tinder (risos).
Acabamos de descobrir o título desta entrevista (risos).
FM – Foi à conta do filme de zombies de que falámos antes da entrevista. Fui a um festival de cinema na Argentina e apresentaram-me o Juan como artista de storyboards. Nunca trabalhámos juntos, mas cinco anos depois eu apanho-o no Messenger e digo-lhe: “Nós não falamos há anos e anos, mas eu tinha aqui uma ideia para uma banda desenhada.” E ele disse “ok, vamos lá a isso”, mas a pensar visivelmente que tal nunca iria acontecer.
JC – Essas coisas que sucedem frequentemente, malta que fala de projetos. Mas nesse caso aconteceu. O processo do primeiro livro foi muito interessante: nenhum de nós tinha feito banda desenhada e eu há vários anos que já não fazia storyboards nem desenhava. Foi como reviver, sentimos uma grande incerteza antes de o livro sair. Nenhum de nós conseguia prever a reação das pessoas.
A vossa linguagem parece muito mais próxima das graphic novels e do cinema do que a banda desenhada europeia clássica.
JC – A nossa opção foi fazer um relato gráfico simples para não complexificar ainda mais a história. Por uma questão prática, queríamos completar o livro no espaço de um ano (coisa que ficámos longe de conseguir) – este não é um trabalho principal, porque tanto o Filipe como eu temos outros trabalhos. O livro está estruturado para se poder fazer de uma maneira sistemática. É, no fundo, uma combinação de duas coisas: uma questão prática e um compromisso de tentar não fazer o leitor perder-se com excesso de protagonismo do desenhador.
Mas o livro tem uma forma muito cinematográfica.
JC – Sim, até porque originalmente estava construído como um guião, e tanto o Filipe como sobretudo eu dedicámo-nos mais ao cinema. E foi também uma decisão que tinha que ver com a pergunta anterior: o nosso objetivo era conseguir uma narrativa o mais fluida possível que não chocasse com os elementos fantásticos da história.
Qual é a língua que os africanos falam no livro?
FM – É mandinga. É daquela zona do sul do Senegal.
Como é que chegaram lá?
FM – Conheci alguém que conhecia alguém que conhecia alguém que conhecia essa língua. Um colega meu que esteve comigo na rodagem d’“Um Mundo Catita”, o Eduardo Cunha, passou muito tempo na Guiné e conhecia muitas pessoas lá, e a minha mulher conhecia um músico da Guiné que vive cá, e no meio destas pessoas chegámos ao mandinga.
Este livro provavelmente já não vai ser filme, mas tem algum projeto nessa área?
FM – Empenhamos muito do nosso esforço para este formato. É o nosso quinto livro juntos. Temos uma dinâmica de trabalho muito compensadora. É um privilégio gigante o momento em que falamos de ideias e, de repente, surge algo: é uma espécie de gasolina para aguentar o dia- -a-dia. São estes momentos que fazem que uma pessoa queira continuar a trabalhar. Queremos fazer mais livros. Cinema é mais complicado, porque envolve trabalhar com muita gente.
JC – O cinema implica processos mais demorados para que aconteça. Há pouco passaram-me o guião de um filme que está previsto rodar em janeiro de 2017. A primeira conversa que tive sobre este filme, com o realizador, data de há dois anos e meio. Os projetos necessitam de financiamentos, os argumentos vão mudando nesse tempo, os atores que podem deixam de poder, é um processo de trabalho muito mais complicado devido a implicar muita gente.
Um filme em que participou ganhou o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.
JC – Sim, fiz os cenários. Quando foi a entrega do prémio, eu até estava com o Filipe em Lisboa, estávamos a limar as últimas coisas do guião do deste livro.
FM – Também digo, pela minha curta experiência, que não creio que o cinema dê mais trabalho que deu este livro. A questão é que, no cinema, quando se encontra uma ideia tem de se encontrar os meios e o dinheiro para a realizar. O dinheiro acaba por limitar a ideia. O esforço que é preciso fazer para encontrar uma ideia que seja possível filmar sem que pareça um filme pobre é uma tarefa que demora grande parte do tempo.
Mas isso em Portugal não tem muito a ver com a falta de investimento em ideias e argumentos? Por vezes, um bom argumento é mais de metade de um bom filme. Quando vemos o “Sexo, Mentiras e Vídeo”, nada daquilo é complicado de filmar, mas tudo resulta muito bem.
FM – Completamente de acordo. O problema é sempre a falta de ideias. Isto é o maior cliché do mundo, mas com um iPhone faz-se um filme se se tiver uma ótima ideia. Há um filme que está a rodar os festivais, que eu curiosamente não vi, que se chama “Tangerine” e que é feito todo com um iPhone.
JC – O trabalho que deu este livro não foi menor do que daria um filme, embora possa haver filmes que deem muito menos trabalho, com pouco tempo e poucos recursos, mas que ficam bastante maus. É preciso muito esforço para se fazer alguma coisa bem. No nosso caso, este livro poderia ter sido feito em muito menos tempo, e acabar em setembro do ano passado, mas não teria ficado bem.
Mas certamente o sair muito bem não é tudo. No caso do Filipe, ele fez uma série genial, “Um Mundo Catita”, mas pelos vistos isso não lhe abriu portas para fazer mais coisas em Portugal.
FM – Já me revoltei com essa ideia, já me conformei com essa ideia e agora vivo bem com essa ideia. Com a banda desenhada, já consegui arranjar uma forma de continuar a trabalhar.
Como surgiu essa hipótese de trabalharem com o Frank Miller?
FM – Calma, nós não trabalhamos com o Frank Miller. É uma editora, a Dark Horse. O realizador do “Thriller”[videoclipe mais conhecido de Michael Jackson], o John Landis, por alguma razão sobrenatural engraçou com o nosso trabalho e levou o nosso livro a um amigo dele que é o dono da Dark Horse. Há uma explicação: é que o nosso livro é declaradamente, e sem saber que o íamos conhecer assim, uma homenagem tremenda, borderline graxa, porque nós crescemos a ver os filmes do John Landis. Conclusão: ele viu a banda desenhada, identificou-se com aquilo e levou ao patrão da Dark Horse, que se decidiu a editar o livro e nos convida para fazer histórias de oito páginas para uma publicação que se chama “Dark Horse Presents”. E foi a primeira vez que eu recebi dinheiro para escrever (risos). Não foi muito. Isto para dizer que foi uma pressão muito grande. O problema são sempre as ideias. Nós estávamos pressionados para ter uma ideia para aquela história e o facto de estarmos ao lado do Frank Miller e outros dava impressão que iria contribuir para nos bloquear, mas deu-nos uma avalanche de ganância de adrenalina – queríamos que saísse bem e acho que conseguimos. Mas neste momento não sabemos o que faremos.
Tradicionalmente, as entrevistas começam com “como tudo começou?” e acabam com o ortodoxo “têm projetos para o futuro?” (risos)…
JC – Aquilo que nos acontece nos nossos trabalhos, a mim como diretor de arte e a ele como músico, é que chegamos às coisas pelo próprio trabalho. Poucas vezes a ideia vem da inspiração pura e simples. Aproveitamos o tempo livre para falar de ideias novas, mas aquilo que elas acabam por ser depende sobretudo do processo de trabalho. As melhores ideias que este livro tem resultaram de discussões de como resolver os problemas que surgiram, não apareceram connosco sentados à espera de uma inspiração repentina. As boas ideias foram-se formando a partir de sobreposições e acumulações de trabalho. As ideias básicas também funcionam assim. É verdade que às vezes há uma inspiração e uma ideia que é brilhante, mas mesmo essa requer imenso trabalho para ser desenvolvida e concretizada. Qualquer história de um livro, de um filme bom, tem por base uma boa ideia, mas existem infindáveis filmes maus feitos a partir de uma ideia que podia ser igualmente boa. A ideia exige sempre trabalho.
A forma como se toca jazz tem alguma influência nas outras facetas do Filipe Melo, nomeadamente como coautor dos “Vampiros”?
FM – O contrário também pode ser dito: a forma como se processou este livro tornou-me melhor músico. No jazz eu era sempre partidário da tradição, estrutura e linguagem tradicional. E com este livro, quando o começámos, em 2008, era também adepto de uma estrutura linear. Mas a trabalhar com o Juan e com as longas conversas que tive com ele, o resultado foi muito mais uma composição, fomos para áreas mais abstratas do que pensámos ir. Nos nossos livros anteriores, que são livros de entretenimento, o que uma pessoa vê ali é o que é. Aqui tentamos ir para zonas mais abstratas que eu ligo ao freejazz, que é uma área da cabeça que nós não conseguimos entender muito bem porque é um pensamento não linear. E isso aí interessa-me muito mais, quer narrativamente quer como músico.