Afonso de Melo. “Ronaldo é tão universal como foi Eusébio: não se pode tirá-lo da seleção”

Afonso de Melo. “Ronaldo é tão universal como foi Eusébio: não se pode tirá-lo da seleção”


Afonso de Melo esteve no gabinete de imprensa no Euro de 2004 e foi assessor da seleção de Scolari no Mundial de 2006


A uma semana de Portugal dar o pontapé de saída no Euro’16 emFrança contra a Islândia, o i foi tentar perceber como é que a seleção das quinas, que tem dito que este ano é “para ganhar”, poderá trazer o caneco pela primeira vez. Talvez olhando para os “Magriços” do Mundial de 1966, que se estrearam na competição, deliciaram a imprensa estrangeiro e só cairiam aos pés da Inglaterra nas meias-finais – a anfitriã e a vencedora dessa edição. Nomes como Coluna, Morais, Hilário ou Eusébio serão para muitos os obreiros da melhor campanha de Portugal além fronteiras, para o jornalista Afonso de Melo são os “Homens comPressa”, o título da sua obra, que recorda, 50 anos depois, aquela “época que não volta mais”, como escreve. E muito há para aprender com esse tempo.

Que “homens eram estes com pressa” no Mundial de 1966?

Esta frase é retirada de um artigo de um jornalista inglês  quando viu o Eusébio contra a Coreia do Norte a ir buscar a bola para recomeçar o jogo. Pressa de jogar, de marcar golos, de ganhar. Eu aproveitei essa frase para estender à equipa inteira. Depois dePortugal estar a perder 3-0 muito cedo, a forma como a seleção jogou e recuperou [5-3], faz parte da história do futebol. É um jogo de que toda a gente fala, tenha a idade que tiver. Havia uma grande vontade da seleção se distinguir, de fazer algo que nunca tinha feito porque nunca tinha ido  a um Campeonato do Mundo. 

Portugal foi o primeiro do seu grupo (contra o bicampeão Brasil, a “grande Hungria” e a “terrível Bulgária”), ultrapassou a Coreia do Norte nos quartos-de-final num jogo inesquecível e só caiu aos pés da anfitriã e vencedora Inglaterra. Foi quase tudo perfeito?

Sim. Ainda há uma certa áurea de mistério em relação ao jogo contra a Inglaterra. O jogo era para ser em Liverpool onde Portugal estava sediado, mas foi mudado para Londres. A FIFA veio com uma desculpa de que a seleção portuguesa, pela qualidade que tinha, merecia fazer um jogo em Wembley, só que esse jogo foi contra os ingleses. Portanto, a vantagem não era nenhuma. A Federação Portuguesa deFutebol [FPF] facilitou, não quis arranjar problemas nem se impôs, segundo algumas pessoas da altura. 

A verdade é que Portugal chega aWembley de rastos…

Gastou as forças todas contra a Coreia, a equipa estava esgotada física e mentalmente. Era muita coisa para uma seleção só, que não tinha tanto peso como oBrasil ou a Itália.

Mesmo assim, conseguimos “vingar-nos” contra oBrasil (3-1) na fase de grupos.

Foi a nossa “vingança da bola quadrada” como escreveu o mestreCarlosPinhão.Para os brasileiros foi praticamente criminoso, foi uma facada entre a terceira e a quarta costela, direta ao coração. Nós, que não jogávamos nada, já estávamos capazes de dar lições. Houve uma grande preparação por parte da comitiva portuguesa, que depois foi recebida em festa em Lisboa. 

Uma imagem contrária à de um país cinzento, que vivia sob uma ditadura. O que significava a seleção nesses tempos?

Era um  orgulho. Portugal era muito criticado pela guerra colonial lá fora. Ao ler jornais estrangeiros dessa época encontram-se duas versões: uns que acham que Portugal era o futuro, dos brancos e negros misturados, um pouco como foi a França em 1998. E os críticos que diziam que Portugal se aproveitava das colónias para fazer boa figura. A seleção  permitiu a uma série de atletas terem um reconhecimento internacional que não teriam se nunca tivessem jogado. Acho que  o Eusébio ou o Coluna são exemplos bons disso: foram orgulhosamente moçambicanos, mas também orgulhosamente portugueses.

Ao nível da análise dos adversários antes do mundial, Portugal foi também minucioso.

Houve um trabalho muito grande de Manuel da Luz Afonso, o grande cérebro desta seleção. E tinha uma ligação muito boa com o Otto Glória [os dois treinaram a seleção na altura]. Houve uma grande preocupação em “espionar” os adversários.Depois foram escolhidas equipas para os jogos de treino com características semelhantes às da fase de grupos, que era algo que não se ligava muito nessa altura.

Já os jogadores portugueses eram sempre muito diretos. Ainda não havia o politicamente correcto ou o “míster é que sabe”.

Eu também já estive do outro lado e sei como as coisas são. Os jogadores  já vão muito preparados para aquilo que vão dizer aos jornalistas.  A verdade é que hoje uma frase só dá praticamente para fazer uma abertura de um jornal. E por outro lado, havia uma relação de confiança entre jornalistas e jogadores que já não há, porque é impossível gerir 150 jornalistasà volta de uma equipa.

No livro defende muito a ideia de que o jornalismo desportivo também pode ser literário e de certa forma romântico.Hoje ainda o consegue ser?

Acho que sim.Estas fases finais de europeus ou de mundiais são a altura ideal para se escrever com algum romantismo. Como no Mundial’66 foram os “Magriços”, em 2016 será outro grupo de portugueses que vai aFrança lutar contra austríacos, húngaros e islandeses. Há sempre esta ideia de representação do país, com algum romantismo por trás.

Saltemos para oEuro’2004, em que oAfonso fez parte no gabinete de imprensa. 12 anos depois, já se percebeu o que falhou?

Nós que lá estivemos ainda hoje falamos nisso e não sabemos bem o que falhou.  Criou-se muita ansiedade nos jogadores e no público, que não foi o mesmo naquele dia. Depois deste Euro ter sido a maior festa do futebol dos últimos 30 anos, de todo o ambiente de amizade entre gente de toda a Europa, a final devia ter sido um proforma de entregar um prémio a quem no fundo fez tudo aquilo. Houve falta de peso institucional de Portugal no mundo de futebol para que as coisas tivessem sido resolvidas de outra forma.

Também esteve como assessor da seleçao de Scolari no Mundial de 2006 na Alemanha, que, para muitos, foi o principal responsável pela onda de entusiasmo em redor da seleção nesse período.

Ele transferia a alegria para dentro do trabalho, sentiu que os jogadores gostavam de estar juntos. Exteriorizavam mais o prazer de estar na seleção, era mais genuíno e não precisava de tanta construção de marketing como precisa agora para rodear a equipa de uma imagem que é mais aFPF a dar, e não tanto os jogadores.

Completamente diferente: o descalabro noBrasil há dois anos.

Não sei se foi um descalabro, mas se compararmos a equipa actual com a de 2004 há pouco para comparar.Já nem oRonaldo é o mesmo. Se o incluíssemos naquela equipa com a idade que tem,Portugal ganhava tudo o que era mundiais e europeus.

Estamos então reféns deRonaldo?

Estamos, toda a gente está. Ronaldo é uma figura tão universal que não se pode tirá-lo de Portugal.Como oEusébio foi no seu tempo na seleção e noBenfica. O Ronaldo é outro, é melhor. Esta equipa é pior.
No entanto há uma mensagem transversal entre jogadores e staff de que vamos aFrança para ganhar.
Não é uma posição nova. No Mundial de 2002 a seleção saiu daqui com uma fortíssima convicção de que iria muito longe no campeonato com grandes jogadores e acabou por ser péssimo. Em 2006 o discurso não era tão claro, mas dizia-se que éramos das quatro melhores equipas. Pode discutir-se se a qualidade desta equipa merece optimismo, mas não sou contra este tipo de mensagens.

Disse que a seleção foi a catapulta de muitos jogadores. Renato Sanches estreia-se com 18 anos em França. Jogar pela seleção A ainda tem a mística de representar o país, ou é só uma montra para os grandes clubes?

Sim é uma montra, mas não acho que seja só um negócio.Jogar na seleçãoA ainda é uma coisa muito importante na carreira de um jogador.

Mas não pode ser perigoso para jovens comoRenato Sanches?Este escalada repentina no futebol?

Acho que não. Um jogador como o Renato só tem a ganhar com isto.Estou convencido de que vai jogar, não sei quanto tempo, mas penso que vai. E isso só lhe vai acrescentar lastro na sua carreira.

Em França teremos outros “homens com pressa”?

Não sei. Foi um apuramento calmo, mas não foi deslumbrante.O grupo não é dos mais difíceis, depois vai depender. Há quatro ou cinco equipas melhores que Portugal e nós não temos capacidade para as vencer, mesmo quando estamos melhor.Não temos lá a Holanda que faz falta. É a equipa a quem ganhamos sempre. Faz muita falta [risos]