Um começo basta às vezes para nos desacertar o passo: “do peito aberto saiu larva sem eco”… Um editor de que nos lembramos punha as mãos num parêntesis a proteger a boca e suspirava um Ó grande de espanto como se um segredo. E nestes casos era, é. O livro é-lhe dedicado, e percebe-se. Ainda nesse começo escreve Nunes da Rocha: “ensinar-te-ei modos de atravessar paredes/ quando ninguém é perto/ ou saudade”. Mais um passo e ouvimos “subir escadas quando a noite se cola aos pés/ descalços se disseres adeus/ nus quando à porta bateres”… E se querem a fasquia alta, que tal isto para programa: “ensinar-te-ei a respirar quando o ar for um vómito”. Não é por acaso este envio para o poeta que morreu de espanto. Como se o céu houvesse irrompido num limbo de almas bafientas, corpos que eram só os gestos já de se aperaltarem, uma gente dentinhos, de olhos afeitos a buracos de fechadura, uma podre curiosidade espiã e orelhas como ventosas, habituadas a arrancar confissões às paredes, perseguindo palpitações, pulsações irregulares…
Ainda viu os presos políticos sair de Caxias, viu um país que afinal, e naquelas horas não é difícil imaginar como a realidade lhe terá parecido raptada, um exagero que ainda por cima trouxe flores, e em que alguns se deram carta branca para sonhar até ao limite das suas possibilidades. Para alguém que se perguntara o “que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”, só lhe restava morrer entre acreditar e não acreditar em tudo aquilo. Nas ruas onde tanto ansiou “sobreviver livre”, o saco da alegria não pôde conter tudo, rasgou-se numa “overdose de beleza”. Pedro Oom terá sido o único português que se sabe que honrou o momento morrendo da mais natural de todas as causas. E estes anos todos depois, é triste que Oom possa ser ressuscitado nas suas palavras e na medida do horror com que estes dias remontam o pequeno nojo cá dentro, cúmplice do grande nojo lá fora.
Não fosse isto suficiente para o desespero, podemos sempre contar com as instâncias culturais para prosseguirem com o seu circo pleonástico. Há dias um júri desses revelhos quis que o poeta-feito-símbolo, Manuel Alegre, o melhor dos nossos poetas assim-assim – e isto não o digo eu, disse-o Agustina – em meses amealhasse umas massas com um Prémio de Consagração da Carreira reforçando um Grande Prémio Vida Literária, a que juntou agora mais um (o XXI Grande Prémio de Literatura dst) pelo seu novo livro, “Bairro Ocidental”, que, já vos adianto, nada nos adianta. Um júri que quis atestar, e “por unanimidade”, que o poeta continua, que de novo orquestrou na sua voz o urro de danação dos mestres da sujeira que nos causa náuseas só de respirar neste tempo. Mas se não há um só poeta que reclame de Alegre a menor influência, se a sua poesia vai de hino para o balofo cerimonial que nos quer fazer engolir que recordar é viver, a este júri – Vítor Aguiar Silva, Carlos Mendes de Sousa e José Manuel Mendes – há que acusá-lo de ter preferido refocilar na redundância, ajudar à surda vertigem com que tudo se escoa num mesmo ralo, incapaz de dizer mais que as horas ao momento que passa, por abraçar a insignificância em vez de dar eco a um discurso que relampeje de aviltamento contra a sufocação e a mordaça deste tempo, um em que a dor não seja uma mera representação. Uma geração que consente deixar-se representar por um Alegre é uma geração refém da que lhe precedeu.
Cordoaria Nacional, de Nunes da Rocha
Edições Averno / 52 páginas / 10€
(…)
olha a hesitação hábil
do rato morto
entre purga e exaltação
o trabalho fonético das moscas
é memória no calor de cardos
fedor imóvel junto ao sono
sem dentes carne ou ambição
esquece assim a idolatria
a inclinação estrangeira no falar
também o assobio sem arte
no modo precário de morrer
com sangue a entaramelar aceno
sorvendo cuspo
sob postigo animal
na confusa maneira de pensar
lei ou promessa
aguarda acidente e fractura
ao telefone
foste sempre recto
com breve orgulho portátil
mas a repugnância e o enlevo
ou a sombra nos bolsos escondida
é que te leva à mendicância
preso a janela contrária
d'outros lábios apartado
olha o animal na rodilha de si
aguarda o sono barbitúrico
o relato do dia quase
porque os lençóis serão mortalhas
antes do regresso a casa
se fores sincero
será prazer sem destino
e para cada lâmpada fundida
cada cartaz na rua
vizinhança debruçada à janela
toma a mão que escolheste no adeus
e adormece com uma estrela cega
no sovaco de pedra
sob a melodia tóxica dos vermes
ó jazente príncipe inacabado
talvez os céus se compadeçam de febo
livre enfim de um destino por empréstimo
e de dafne a beleza crudelíssima
até lá depõe flores artificiais
lava a pedra do mijo dos cães
para a morte ser um hábito a ter em conta