Apesar dos arrufos de alguns dos mais radicais neoliberais europeus, Portugal tem beneficiado de uma relativa tolerância da generalidade da União Europeia, do seu informal eurogrupo e das grandes instituições financeiras como o BCE e o FMI. A recente e positiva reunião de Marcelo Rebelo de Sousa com Merkel foi o exemplo disso, embora seja certo que lá por Berlim também se usa o esquema polícia bom polícia mau, ficando esta última parte a cargo do insuportável Schäuble, que faz questão de ser sempre o mais desagradável possível, recordando-nos que Hitler não era propriamente um homem só.
É preciso ter consciência plena de que a bonança que toca a Portugal tem tudo das acalmias que antecedem as tempestades tropicais, um dos mais violentos fenómenos da natureza.
Na origem da aparente benevolência estão circunstâncias raras. A Espanha está em vésperas de eleições, o Reino Unido tem marcado um referendo para decidir se sai da União Europeia, a França vive uma crise sem precedentes, com um presidente politicamente moribundo, e a Finlândia espalhou-se ao ponto de precisar de austeridade. Isto enquanto o Leste europeu demonstra que não veio para obedecer cegamente aos radicais, mesmo que, para resistir, alguns dos seus povos optem por partidos extremistas de direita nacionalista, anti-islâmicos e antissemitas. O que está a acontecer na Hungria e, em menor grau, na Polónia, e ia sucedendo na Áustria (a terra de Hitler e, na prática, uma parcela da Alemanha), é também reflexo de uma resistência aos ditames de Bruxelas, onde Juncker está desaparecido e sem protagonismo (ainda havia quem considerasse Barroso apagado!). Se não fosse esta conjuntura global, Portugal estaria muito possivelmente a trilhar o caminho da Grécia, pois a um enquadramento europeu negativo somamos maleitas específicas. Desde logo, a situação económica que o governo Costa recebeu, que é pior do que se apregoava, com casos sucessivos como o Banif, o efeito BES/GES, o desastre das soluções do Novo Banco, a descapitalização da Caixa e da banca em geral e a manipulação de números para efeitos estatísticos. A isto soma-se uma crise em todo o mundo CPLP e países onde há grandes comunidades portuguesas, como a Venezuela ou a África do Sul. Na economia, as exportações ressentem-se devido à conjuntura geral, enquanto o proclamado aquecimento por via do consumo interno não está a verificar-se, conforme demonstra a quebra do IVA, um imposto sobre o consumo.
Apesar deste quadro, António Costa tem conseguido manter, interna e externamente, uma imagem de serenidade. Mas é claro que algo tem de mudar para que os rottweiler dos mercados não ataquem Portugal da forma como têm feito em relação à Grécia, constantemente martirizada e torturada, e cujos apoios resultam de ser o ponto geográfico de ligação ao Oriente e, portanto, a plataforma estratégica mais importante no extremo europeu oposto ao de Portugal. Mesmo assim, há que ver o que vai acontecer depois de Atenas ter anunciado que, afinal, não tem condições políticas para aplicar o novo pacote de austeridade que lhe impuseram no fim de semana.
Tendo um congresso, já este fim de semana, onde só Francisco Assis e Sérgio Sousa Pinto (este se for e falar) poderão dar uma nota dissonante, o mais provável é que Costa aproveite a circunstância interna e o contexto externo para reafirmar todos os seus compromissos com a esquerda, com a direita, com Marcelo, com a NATO, com a União Europeia, enfim, com tudo o que for preciso para que o seu governo todo-o-terreno continue a avançar, subindo, descendo, evitando ou contornando obstáculos, num exercício de pragmatismo político jamais visto por estas bandas.
Salvo improvável implosão governativa, António Costa é o centro de gravidade de uma construção instável mas que, ao fim de seis meses, demonstrou ser politicamente resistente e ter conquistado a simpatia de um eleitorado inicialmente desconfiado – que, nesta altura, parece ter entranhado o novo tipo de governação, à qual aparentemente não atribui a exclusividade da responsabilidade face a uma possível derrapagem. Pelo contrário, a perceção geral é de que o cenário internacional arrasta e impede o governo Costa de apresentar os resultados que anunciava.
À boa maneira portuguesa, é assim que vamos andando todos, a começar pelo Presidente Marcelo, esperançados que não aconteça o que começa a estar na cara que aí vem, ou seja, uma tempestade económica violenta da qual Portugal só sobreviverá se ela, de facto, atingir, além dos PIGS, países como a Alemanha (através da banca), o Reino Unido, a França, a Bélgica, a Holanda, a Áustria, o Luxemburgo, a Noruega e por aí fora. Se assim for, pode haver soluções globais, mas se ficarmos sós no meio da tormenta não teremos outra solução a não ser mais resgates e mais austeridade, voltando a uma política acéfala que não resolveu praticamente nada e só agravou as coisas, porque se passou o tempo a atirar lixo para debaixo dos tapetes, fingindo que estávamos a limpar a casa.
Jornalista