José Soeiro tem o olhar brilhante de quem acredita no que faz. Oriundo do movimento estudantil, empenhou-se no Bloco de Esquerda. Foi, entre outras coisas, seu candidato à Câmara Municipal do Porto e tentou fazer da campanha o espelho de uma forma de exercer o poder de forma diferente. A precariedade e a criação de novos sujeitos sociais que tenham a ambição e capacidade de transformar a vida e mudar o mundo são as suas batalhas.
Antes do livro “A Falácia do Empreendedorismo”, como começou a sua carreira de empreendedor político?
O ativismo político tem muito a ver com a minha experiência de ativismo no ensino secundário, que coincidiu com o aparecimento do Bloco: uma coisa diferente, na altura, que surgiu como a junção de diversas pessoas para formar uma nova organização de esquerda. Na altura, eu estava a começar esse ativismo no ensino secundário. Houve essa coincidência de tempo. Por um lado, no ensino secundário havia um grupinho que estava a fazer coisas novas contra as injustiças quotidianas das instituições, do género: porque é que nós ficamos atrás na fila da cantina? Porque é que há umas escadas para professores e outra para os alunos? Por outro lado, abriam-se vários campos de ação: a contestação às reformas curriculares no secundário, a formação do Bloco de Esquerda e o aparecimento do chamado movimento alterglobal [as manifestações em Seattle contra a chamada Ronda do Milénio da Organização Mundial do Comércio são nesse ano de 1999].
De alguma forma, essa sua preocupação e envolvimento na atividade política é fruto de uma reflexão individual, mas também de um quadro familiar que ajudava a isso: o seu pai foi dirigente da UDP.
Na altura não era, ele era independente, e entrou até depois de mim no Bloco, mas é sabido que trabalhava em publicidade e que fez uma das propostas de símbolo do BE, que foi até a que foi acolhida. Era uma pessoa ativa na Associação 25 de Abril, na editora Abril e numa série de organizações no Porto. Mas é verdade que quer o meu pai, quer a minha mãe têm um envolvimento no ativismo: a minha mãe, mais na militância pedagógica e ligada à educação, e o meu pai mais em organizações políticas e culturais.
E claro que a minha socialização é feita nesse contexto.
A participação política é algo que, como consta no empreendedorismo, é fruto de uma decisão individual ou é resultado de um contexto político e social?
Não é um acaso que, quando há momentos sociais fortes e grandes transformações, as pessoas são envolvidas e arrastadas por esses grandes acontecimentos. Se formos ver, há momentos sociais em que existem explosões e ciclos de luta que são grandes momentos de formação de gerações de ativistas que ficam marcadas por acontecimentos comuns, como a luta contra as propinas e o movimento alterglobal. Acho que há uma relação entre a situação social e política num determinado momento e local e os processos de politização. Claro que há também uma dimensão de escolha individual, mas essa decisão é tomada sempre em determinadas circunstâncias. É difícil opor a escolha individual e as circunstâncias em que é feita, porque nunca há uma escolha fora dessas circunstâncias.
E para ajudar foi para Sociologia.
Tinha pensado ir para Francês, porque tinha muito gosto pela língua e cultura francesas, mas depois acabei por ir para Sociologia. Foi importante nessa minha escolha um contacto com gente que escrevia coisas que me começavam a interessar. Lembro-me de ler com gosto um livro de [Pierre] Bourdieu, de textos mais de intervenção que ele fazia, “Os Contrafogos”, e que na altura me pareceu uma espécie de revelação. No sentido, como ele próprio diz, de que a sociologia deve ser uma ciência que desilude, que deve servir para tirar as ilusões, esse exercício de desconfiança sobre o familiar e o senso comum foi muito importante, parece que estava a desvelar e a revelar-me qualquer coisa que se estava a passar. Claro que a sociologia é um convite a uma curiosidade sobre o que se está a passar, tem uma reflexão crítica. Não quer dizer que se enquadre toda dentro de um mesmo paradigma e que tenha toda os mesmos pressupostos. Mas, em geral, significa olhar com outros olhos o que está à nossa volta e desconfiar daquilo que nos é familiar.
A sua tese de doutoramento é sobre o quê?
É sobre o processo de precarização do trabalho em Portugal, sobretudo a partir dos anos 80, com uma descrição de quais foram as transformações na economia e na regulação do trabalho que explicam esse processo e uma tentativa de identificar esses períodos do processo de precarização ao longo dos últimos anos; e a outra parte é uma análise das ações dos precários, da constituição destes enquanto sujeitos de ação coletiva, e como a partir dos anos 80, por via de organizações de desempregados como o Centro de Apoio aos Desempregados de Setúbal, e no final dos anos 80, por via de outras experiências que pretendiam organizar secretamente no local de trabalho, como o Stop Precariedade e outros, como é que tudo isso, as mobilizações e experiências de organização foram tornando o precariado ator coletivo.
Hoje, essas regras laborais que eram estranhas no início dos anos 70 tornaram-se comuns a todas as gerações mais novas, algumas delas que não chegaram a ver o trabalho com direitos. Acha que o precariado tem condições de se tornar um sujeito coletivo em Portugal?
O precariado tem sido, em vários momentos, um sujeito de ação coletiva. No ciclo de ações que eclodiu em 2010 e 2011, como os indignados, que teve acampadas, a geração à rasca, as manifestações contra a troika, os ocuppy, as ocupações de praças em Espanha e as ações na Grécia, o precariado foi o catalisador dessas mobilizações, o que não quer dizer que tenha sido o único protagonista delas. Muitas dessas mobilizações, embora diversas, começam por identificar a juventude precarizada como ator central que teve a capacidade de arrastar outros setores sociais precarizados ou afetados pela austeridade. Em Portugal é muito evidente que esse ciclo de mobilizações começou com uma manifestação em que a questão da precariedade era central: o 12 de Março. Depois o movimento foi-se expandindo e alargado a outros setores. É verdade que esse segmento da juventude precarizada foi fundamental para a mobilização de outros setores.
Essas manifestações aconteceram, mas parece que não foram criados laços nem empoderados os precários…
Isso é justamente uma questão que vale a pena analisar. Uma das dificuldades que houve nessas mobilizações foi assegurar a sua continuidade, nomeadamente inscrevê-las no tempo como organizações. Mas, mesmo assim, esse processo levou à criação de novas o organizações como o sindicato dos call centers e os Precários Inflexíveis, isto para dar exemplos em Portugal. Até se pode dizer que organizações como o Podemos em Espanha são formas de dar expressão organizativa e política a esses segmentos. Mas é evidente que a precariedade da condição também se traduz na precariedade da organização dessas camadas enquanto tal. E também é verdade, se nós analisarmos as lutas laborais ou as lutas especificamente no trabalho, que a identidade precário não é, frequentemente, uma identidade que as pessoas identifiquem enquanto tal, porque muitas vezes é mais forte a identidade de determinados setores: os professores contratados ou os arquitetos precários, por exemplo. O que procurei analisar na tese é como podemos perceber, do ponto de vista da construção desse sujeito, os processos de identificação: temos associações, plataformas e há um conjunto de setores em relação aos quais o sindicalismo tradicional teve dificuldades em conseguir responder. Há organizações com as suas fragilidades, mas há outros processos: as mobilizações são acontecimentos e explosões sociais, mas também são formas de construção dessa identificação porque, durante esses processos, a categoria de precário, geração à rasca, jovem sem futuro, o que seja, são categorias que permitiram às pessoas identificarem-se ao ponto de saírem à rua. Mas a rmas de continuidade que encontraram é uma bela questão. Temos coisas como o site Ganhem Vergonha ou espaços de encontro contraculturais, como o Mob ou o RDA. Nós podemos olhar para esses espaços como as tabernas para a classe operária no século passado, como sendo espaços de encontro, socialização e conspiração política.
Quando se vê o RDA e o Mob, todos eles se conhecem e encontram e são uma minoria de uma minoria…
Mas isso é um processo dinâmico em que há momentos em que as pessoas se reconhecem num sujeito coletivo. Quando as pessoas saem à rua, e analisas os materiais que são entregues, por exemplo, depois da geração à rasca, percebe-se que há ali uma identificação difusa. Se me disser, “mas depois desses momentos, quem fica nas organizações é uma minoria”, ok, mas isso é possível dizer em relação a determinados grupos profissionais que sabemos que não são definidos de uma forma fixa nem construídos à partida.
O processo de precarização é um processo de fragmentação das identidades, nomeadamente laborais, é um processo de individualização da identidade das pessoas, é um processo de desestruturação das formas anteriores de construir solidariedades no local de trabalho, desde logo pela multiplicação de estatutos que as pessoas têm numa mesma atividade. Sendo a precarização esse processo de dissolução das solidariedades no local de trabalho e de individualização e remercantilização do mercado de trabalho, não é um processo unívoco: ao mesmo tempo que isso acontece, também foram criadas formas novas de solidariedade de organização. Mas que elas não têm ainda a capacidade de ser maioritárias e mais duráveis no tempo é uma evidência…
Mas há processos coletivos de massas numa sociedade que está individualizada, como a praxe.
A praxe faz-se a partir da presença numa instituição comum em que as restrições a uma comunicação livre entre pessoas são muito menores que nos locais de trabalho.
Mas na universidade também há ativistas estudantis com poucas restrições à comunicação, e não têm de longe a mesma expressão de massas que a praxe.
Claro, mas quando nós olharmos para a praxe verificaremos que é uma forma de socialização e organização que tem conseguido enquadrar muita gente e tem tido sucesso desse ponto de vista. A mim, o que me interessava quando fiz o doutoramento era saber, a partir de uma condição laboral que tem vindo a ser estilhaçada com a precarização, se esta era apenas uma forma de dominação ou se esse processo também fez surgir outras formas de organização, ainda que frágeis e descontinuadas. A questão é perceber em que contextos a organização coletiva é uma improbabilidade, como é que, apesar de tudo, houve experiências de organização, seja nos precários ou nos de-sempregados.
O empreendedorismo aparece como o reverso dessa questão da precarização, como a capa New Age que transforma um problema social de emprego numa escolha individual.
O processo de precarização em Portugal assenta em várias narrativas de legitimação. Vou dar o exemplo de três para chegar ao empreendedorismo. Uma é a que apresenta a precarização como a reparação de uma injustiça: a precariedade é o que permite igualizar por baixo o direito de todos, é o discurso da guerra de gerações – há uns indivíduos que estão a bloquear o emprego dos outros e a precarização é uma espécie de reparação dessa injustiça para os mais novos. Isso foi um dos dispositivos de legitimação moral do processo de precarização. Outro foi apresentar a precariedade como uma forma de libertação: toda a retórica do trabalho temporário, apesar de contrastar muito com a experiência das pessoas que lá estão, é muito um discurso da precariedade como escolha e oportunidade de diversificação do percurso profissional, das experiências, de construir a própria carreira com a acumulação de diversos percursos, de poder adaptar o horário às diversas atividades, de não estar preso à “jaula” do emprego e de uma carreira para a vida. E uma terceira narrativa foi apresentar a precarização como uma espécie de emancipação individual. O empreendedorismo procurou adaptar e fazer coincidir determinadas transformações na sociedade, que iam no sentido de uma maior autodeterminação individual, de uma maior autorreflexividade dos indivíduos, e tentou utilizar essas alterações sociais nas subjetividades para, transportando para o campo do trabalho, dizer: cada um de nós é responsável pelo seu próprio percurso, cada um de nós pode ter a sua própria empresa e ser patrão de si próprio.
Pode dizer-se, se as relações afetivas são fluidas, o trabalho também pode ser fluido…
O problema é que essa retórica que valoriza muito a autonomia, na prática, traduziu-se na redução da autonomia, porque as pessoas estão mais dependentes da sua condição económica, e mesmo o trabalho criou novas formas de dominação: muitas das pessoas que criam uma empresa em nome individual fazem-no para prestar serviços para instituições e até serviços públicos. Verificamos que Portugal tem um número elevado de empresas em nome individual, mas isso significa formas de dominação e até a ocultação da subordinação por via da criação de falsos trabalhadores independentes ou de empresas em nome individual que, na prática, são ocultação das relações de trabalho. Quando dizem aos rececionistas da Fundação de Serralves que eles têm e constituir cada um deles uma empresa em nome individual para poderem ser contratados, não quer dizer que isso corresponda a uma maior autonomia real. Em grande medida, esse discurso do empreendedorismo é contrariado por um resultado em que as pessoas estão mais dependentes.
A emancipação individual não está em contradição com a regulação do trabalho: foi nos períodos em que o trabalho foi mais regulado que as pessoas tiveram mais condições para tomarem decisões do ponto de vista individual.
Mas há uma eficiência social desse discurso do empreendedorismo. E essa eficiência baseia-se no facto de tentar legitimar-se numa organização similar das nossas vidas pessoais: relações menos estáveis…
Acho que se tenta apropriar de transformações que ocorreram na nossa subjetividade e tenta apropriar-se delas para legitimar um determinado processo que é, essencialmente, um processo de precarização do ponto de vista laboral, e tenta responsabilizar a situação individual dos sujeitos por escolhas que são coletivas. No caso do desemprego, isso é muito evidente. Nós damos o exemplo, no livro: uma das situações que nos motivaram para fazer o livro é quando eu e o Adriano, por causa de um trabalho de uma investigação que apresentámos na Associação Portuguesa de Sociologia sobre estas questões, começámos a frequentar cursos de criação do próprio emprego, cursos de empreendedorismo e para desempregados. Fomos, nomeadamente, a cursos da Associação Nacional de Jovens Empresários, num desses fóruns do empreendedorismo. Nós vamos para uma sessão que tinha como tema “Conquistar Emprego em Tempos de Crise – Estratégias para o Sucesso”, em que o formador, no final da sessão, revela a fórmula do sucesso, que era o MET ao quadrado, e pergunta às pessoas o que significava essa sigla. Umas dizem motivação, emprego, trabalhadores, tenacidade… Ninguém acertava, e ele revelou no fim que era “mexam esse traseiro ao quadrado”. Por um lado, é caricato e quase ridículo, mas é verdade que estas sessões existem e são financiadas pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional e são apresentadas a milhares de desempregados como uma saída para o problema do desemprego. O que nós verificamos é que, nas políticas de emprego, o empreendedorismo foi apresentado como sendo, sobretudo pelo anterior governo, praticamente a solução para a crise do emprego. O que aconteceu com esta retórica e a panóplia de políticas públicas que foram criadas para promover o empreendedorismo foi a produção de um discurso de responsabilização das pessoas pela sua situação: o velho discurso de culpabilizar a vítima com a sua própria condição, no caso, de responsabilizar os desempregados dizendo-lhes que, se estão desempregados, é porque não tiveram uma ideia suficientemente boa ou não foram devidamente pró-ativos – para empreendermos, basta ter uma ideia e acreditar muito para resolver qualquer problema – e assim transformando a política económica e de escolhas coletiva num problema individual. Com a agravante de que o empreendedorismo está nas políticas de emprego, entrou na lei de bases do sistema educativo – está em programas que já chegaram a 300 mil alunos dos primeiros graus de ensino –, está nas política sociais, por via das prestações sociais: tu tens uma prestação social, mas o objetivo dela é ativar-te para saíres da tutela do Estado. Os cortes nos apoios sociais foram apresentados como atos de amor para libertar as pessoas da tutela do Estado e insuflá-las com um fôlego que as pudesse fazer caminhar por si próprias.
É um grande negócio?
É. O mais notável é que fomos ver a quantas pessoas é que essa grande solução chegou e verificámos que chegou a 1% dos desempregados oficialmente inscritos, que sabemos que são apenas uma parte dos desempregados. A outra análise que fazemos é que se desenvolveu um negócio do empreendedorismo, que não é um negócio de criar emprego e empresas, mas é um negócio de promover o empreendedorismo. E fomos fazer um levantamento na base sobre ajustes diretos a instituições que promovem o empreendedorismo e verificámos que foram milhões de euros dos contribuintes que financiaram as entidades privadas cujo negócio é dizer que motivam os outros a criar o seu próprio negócio. Por isso é que dizemos que grande parte dessas formações resolveram o problema dessas entidades que pregam o empreendedorismo, mas são pouco eficientes a diminuir o desemprego.
Baseia-se em quê, este discurso?
É uma espécie de utopia neoliberal. Ao basear a sua política na transformação de cada trabalhador em empresário, num contexto de crise, significa que as pessoas se estão a responsabilizar pela sua sobrevivência mas com rendimentos muito baixos. É profundamente contestável a ideia segundo a qual o número de empresas e empresários individuais pode ser um indicador do desenvolvimento da economia. Se tivermos muitos empresários, temos países mais pobres como o Bangladesh e o Vietname, que contrastam com os países nórdicos ou a Suíça, que têm taxas de autoemprego muito menores. Economias desenvolvidas são aquelas que têm massa crítica em organizações capazes de inovação. Em economias com taxas de autoemprego elevadas, as pessoas estão na rua a vender pipocas.