A venda nos olhos dos que vão ser fuzilados


Olhos nos olhos e a centelha de fogo humano que esse encontro gera podem fazer com que o dedo se trave no gatilho ou, pior, com que depois do tiro quem disparou já não consiga ser um homem inteiro


O que se destaca no quadro são os olhares dos que ainda não estão vendados. Nuns perplexidade, noutros terror, nalguns resignação, aqui e ali lampejos de revolta. No chão jazem cadáveres, vendados, e nos vivos há já alguns com a venda posta. Por isso e porque atrás se perfila o pelotão, qualquer observador saberá que os outros também vão ser fuzilados, mesmo que não saiba bem a que episódio da História se refere o quadro pintado por Antonio Gisbert “Fuzilamento de Torrijos e seus companheiros nas praias de Málaga”. E todos os olhares dos que ainda não estão vendados – seja qual for o traço dominante em cada um, da perplexidade à revolta – são de uma profunda humanidade e lançam uma interrogação que fere. Naquela sala sessenta e tal do Museu do Prado, custa olhar nos olhos dos que vão ser fuzilados, mesmo tratando-se apenas de uma pintura.

E essa deve ser a razão principal pela qual são vendados. Não creio que seja para os poupar ao terror da morte iminente – e não seria uma venda que pouparia a esse terror. A venda nos olhos dos que vão ser fuzilados não será principalmente para proteção destes, mas sim para protecção dos que fuzilam. A venda destina-se a poupar quem puxa o gatilho, do olhar – perplexo ou angustiado, resignado ou revoltado, humilde ou desafiador, mas sempre profundamente humano e com interrogações que doem e rasgam – dos que vão ser mortos. Matar alguém que nos olha nos olhos deve ser bem diferente de matar alguém com uma venda. O homem que morre ao nosso tiro é menos homem, é menos um igual, é menos nós, se os nossos olhos não se encontrarem com os seus no momento do tiro. Olhos nos olhos e a centelha de fogo humano que esse encontro gera podem fazer com que o dedo se trave no gatilho ou, pior, com que depois do tiro quem disparou já não consiga ser um homem inteiro. Vendar serve, pois, principalmente para desumanizar e assim para facilitar o tiro ou a vida depois do tiro de quem premiu o gatilho. Vendar cega, mas não cega apenas quem é vendado, cega quem atira.

Vendar é um símbolo poderoso, o símbolo de que, para matar, é preciso desumanizar a vítima. E tirar-lhe o olhar, o seu olhar no olhar do carrasco, é aqui o símbolo maior dessa desumanização. Como escreveu Clarice Lispector, muitos anos depois e sobre um tema tão diferente deste como são os laços de família (embora capaz de grandes cegueiras e desumanizações), “só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam”. E foi ela também que se referiu ao laço entre mãe e filho como um “mistério partilhado”. Ora, a venda procura precisamente evitar que, no momento do tiro, os olhares se encontrem e haja qualquer partilha de mistério, qualquer entrave à morte. É talvez por isso que numa outra sala do Prado, no quadro de Francisco Goya “Os fuzilamentos de 3 de Maio”, os que atiram parecem olhar para baixo, no momento em que fuzilam alguém que não está vendado e cujo olhar grita de tal forma que quase não conseguimos encará-lo.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira


A venda nos olhos dos que vão ser fuzilados


Olhos nos olhos e a centelha de fogo humano que esse encontro gera podem fazer com que o dedo se trave no gatilho ou, pior, com que depois do tiro quem disparou já não consiga ser um homem inteiro


O que se destaca no quadro são os olhares dos que ainda não estão vendados. Nuns perplexidade, noutros terror, nalguns resignação, aqui e ali lampejos de revolta. No chão jazem cadáveres, vendados, e nos vivos há já alguns com a venda posta. Por isso e porque atrás se perfila o pelotão, qualquer observador saberá que os outros também vão ser fuzilados, mesmo que não saiba bem a que episódio da História se refere o quadro pintado por Antonio Gisbert “Fuzilamento de Torrijos e seus companheiros nas praias de Málaga”. E todos os olhares dos que ainda não estão vendados – seja qual for o traço dominante em cada um, da perplexidade à revolta – são de uma profunda humanidade e lançam uma interrogação que fere. Naquela sala sessenta e tal do Museu do Prado, custa olhar nos olhos dos que vão ser fuzilados, mesmo tratando-se apenas de uma pintura.

E essa deve ser a razão principal pela qual são vendados. Não creio que seja para os poupar ao terror da morte iminente – e não seria uma venda que pouparia a esse terror. A venda nos olhos dos que vão ser fuzilados não será principalmente para proteção destes, mas sim para protecção dos que fuzilam. A venda destina-se a poupar quem puxa o gatilho, do olhar – perplexo ou angustiado, resignado ou revoltado, humilde ou desafiador, mas sempre profundamente humano e com interrogações que doem e rasgam – dos que vão ser mortos. Matar alguém que nos olha nos olhos deve ser bem diferente de matar alguém com uma venda. O homem que morre ao nosso tiro é menos homem, é menos um igual, é menos nós, se os nossos olhos não se encontrarem com os seus no momento do tiro. Olhos nos olhos e a centelha de fogo humano que esse encontro gera podem fazer com que o dedo se trave no gatilho ou, pior, com que depois do tiro quem disparou já não consiga ser um homem inteiro. Vendar serve, pois, principalmente para desumanizar e assim para facilitar o tiro ou a vida depois do tiro de quem premiu o gatilho. Vendar cega, mas não cega apenas quem é vendado, cega quem atira.

Vendar é um símbolo poderoso, o símbolo de que, para matar, é preciso desumanizar a vítima. E tirar-lhe o olhar, o seu olhar no olhar do carrasco, é aqui o símbolo maior dessa desumanização. Como escreveu Clarice Lispector, muitos anos depois e sobre um tema tão diferente deste como são os laços de família (embora capaz de grandes cegueiras e desumanizações), “só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam”. E foi ela também que se referiu ao laço entre mãe e filho como um “mistério partilhado”. Ora, a venda procura precisamente evitar que, no momento do tiro, os olhares se encontrem e haja qualquer partilha de mistério, qualquer entrave à morte. É talvez por isso que numa outra sala do Prado, no quadro de Francisco Goya “Os fuzilamentos de 3 de Maio”, os que atiram parecem olhar para baixo, no momento em que fuzilam alguém que não está vendado e cujo olhar grita de tal forma que quase não conseguimos encará-lo.

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