Marcelo fala demais. À esquerda e à direita, a opinião é praticamente unânime sobre este ponto, mesmo que depois a interpretação seja diferente. Nos últimos dias, o Presidente tem sido forçado a vir explicar o que disse e ontem chegou mesmo a falar, de madrugada, ao “Observador” para esclarecer que não via as autárquicas como a data para a queda do governo de António Costa.
Marcelo Rebelo de Sousa contextualizou as declarações que tinha feito na terça-feira, quando disse que a estabilidade governativa estava garantida “até às autárquicas”, rematando com um “depois das autárquicas veremos o que é que se passa”. O Presidente veio explicar que não acha que o governo vá cair por causa dessas eleições e assegurou até que “quer Passos quer Costa são duros e resistentes”, pelo que não está a vaticinar a queda de nenhum dos dois em consequência de um mau resultado nessas eleições de 2017.
Porque disse então o que disse? “Foi para se perceber que estava fora de causa nestes dois anos haver instabilidade. E depois também era desejável que não houvesse. Como havia grande especulação sobre certas leis, queria dizer que nada se alterou significativamente desde o começo da legislatura e das minhas funções. A maioria está estável”, justificou-se Marcelo.
As emendas É a segunda vez que se emenda a si próprio horas depois de declarações que caem mal à esquerda. Na semana passada teve de vir explicar que era ele próprio um “otimista racional” e que só tinha falado no “otimismo crónico às vezes ligeiramente irritante” do primeiro-ministro para fazer o contraponto com essa sua maneira de ver o mundo. Na versão retocada das suas declarações, António Costa passou a ser um “otimista militante”.
A verdade é que, em menos de três meses de mandato presidencial, fica claro que a forma como este Presidente comunica está a anos-luz do seu antecessor, que fazia da palavra presidencial algo raro, muitas vezes apenas sendo usada em discursos oficiais ou em comentários que remetiam para esse mesmo discurso.
Com Marcelo em Belém, tudo mudou. “Habituem-se”, reagia ontem, divertido, um deputado do CDS, num tom que está em linha com a maioria das reações à direita, que justificam esta forma de estar e estas declarações constantes com o feitio de Rebelo de Sousa.
Cata-vento? O feitio do Presidente não serve, porém, para justificar tudo. E é notório que até à direita há estranheza em relação a esta forma de estar. “Pelos vistos, Passos tinha razão quando falava no cata-vento mediático”, apontava ao i um deputado social–democrata.
“Ele fala demais. Vai ter de começar a resguardar-se”, acrescentava outro parlamentar do PSD. “Ainda age como comentador”, frisava ainda outra fonte social-democrata.
O problema é o de perceber que impacto poderá ter esta forma de estar em termos políticos. “O Presidente veio corrigir as palavras, porque a última coisa que ele quer é ter eleições sem que haja a necessária clarificação política. De que serve ir a votos se for para ficar tudo como está?”, questiona um social-democrata.
“Marcelo está a fazer o que tem de fazer. Tomáramos nós que o governo dure até às autárquicas, porque as coisas vão começar a aquecer já na preparação do Orçamento de 2017 e só nos interessa ir a votos quando houver condições para uma clarificação e quando for claro que o caminho do Governo não serve e que as contas estão a derrapar”, concorda outra fonte do PSD.
Uma fonte próxima de Passos Coelho diz que, para já, a preocupação do partido “é com o governo e não com o Presidente”, explicando que a direção do PSD vê neste modo de comunicar de Rebelo de Sousa uma forma de marcar território para quando for preciso agir politicamente. “O Presidente tem a leitura de que terá tanto mais legitimidade política quanto mais apoio popular tiver, e é isso que está a fazer”, analisa a mesma fonte, explicando que ainda é cedo para tirar ilações sobre a atuação presidencial. “Quando começar a fazer vetos e promulgações é que vamos poder perceber como está a conduzir o seu mandato. E isso, só no segundo semestre deste ano.”
Equerda ironiza À esquerda há menos bonomia na análise ao que faz Marcelo e até alguma ironia. “Ele diz-se e desdiz-se. Vamos ver o que diz a seguir”, comenta uma fonte da direção do PS, que viu nas palavras de Marcelo uma indireta a Passos Coelho. “Foi um recado à oposição para se começarem a preparar para depois das autárquicas”, considera o dirigente socialista, que desvaloriza o esclarecimento dado por Rebelo de Sousa ao “Observador”.
Outro alto dirigente socialista concorda na análise de que a explicação do Presidente não apaga a ideia de que Marcelo vê no pós-autárquicas um momento de viragem no relacionamento com o governo. As palavras de Rebelo de Sousa vão ao encontro do que os socialistas achavam ser a estratégia do Presidente, e a única surpresa foi o facto de Marcelo ter dito em voz alta o que se comentava em surdina. “Para nós é melhor. Fica tudo mais evidente”, frisa a fonte socialista, que confessa surpresa pela forma pouco contida de comunicar do sucessor de Cavaco. “Ainda está a agir como comentador. Pensei que ia ser mais contido.”