Hoje não vos escrevo a partir de minha casa. Estou num sítio mágico, onde o deslumbramento está ao alcance dos nossos dedos, o ar é sonhador, o queijo é forte, o céu está mais perto de nós e a probabilidade de encontrar o Pauleta na rua é maior que a normal. Há um ano estive aqui também nos Açores, mas numa altura particularmente difícil da minha vida.
Sabem quando a beleza da natureza é tão estonteante que se torna violento olhar para ela? Foi esse sentimento arrebatador e constante que vivi quando aqui estive, naquela que foi a viagem mais introspetiva da minha vida. A viagem que me fez ver o início e o fim exatamente com a mesma intensidade; a viagem que engoliu os meus medos e me fez chorar, pensei eu, para o resto dos meus dias; a viagem que me obrigou a desabafar, que me tirou a alma e a lavou no rio, entregando-ma mais pura e mais leve. Há um ano, quando vim para cá, não fazia ideia que um ano depois estaria cá novamente, mas agora com uma outra vida. Mas sei que desejei voltar aqui, aqui ao sítio que me abraçou como talvez nunca ninguém o tenha feito. Porque se faz tão bem… é para repetir.
Vim a primeira vez aos Açores em 2015, graças ao convite da Liga Portuguesa Contra o Cancro, para apresentar a palestra Cancro com Humor na ilha Terceira. No entanto, aquela era a pior altura para encarar o desafio de levar o meu projeto um pouco mais longe: queria estar perto dele mais do que nunca e sair por uns dias significava arriscar demasiado. Por outro lado, às vezes precisamos mesmo de respirar outro ar porque, simplesmente, já não estamos a respirar sequer. Mesmo envergonhada, acabei por perguntar-lhe o que achava da ideia de eu ir até aos Açores – parecia-me tão egoísta da minha parte falar sobre a minha vontade de viajar durante três dias naquele momento tão incerto das nossas vidas, mas fi-lo como faço sempre que estou enrascada: a enrolar o discurso enquanto enrolo os fios de cabelo nos dedos, a demorar-me em introduções, a gaguejar e a falar em falsete. Acho que ele se divertiu um bocadinho e deixou-me estar aflita por um tempo, mas depois acabou com o meu sofrimento e arrematou a conversa: “Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum.” Sorri e chorei e agradeci-lhe a generosidade por me ceder aquele espaço, quando ele tinha todo o direito de me querer por perto. Desejou apenas que aproveitasse ao máximo aqueles dias e que não trouxesse mais nenhum sotaque comigo. O que eu tenho já era suficiente. Fi–lo então prometer que seria apenas um “até já”, peguei no meu pai e fomos os dois para os Açores (o meu companheiro de viagem era perfeito porque é o melhor pai do mundo, toda a gente o adora, é o maior admirador do meu trabalho e tira fotografias com flash).
“Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum.” Confiei e isso deu-me coragem para estar durante toda a viagem com o coração aberto. E quando estamos com o coração aberto o que acontece? Encantamo-nos com o mundo e permitimos que nos conheçam. Fiz nesses dias amigos queridos que ainda hoje mantenho e deixei que a paisagem me invadisse ao ponto de me tocar nas entranhas.
No dia da palestra, ansiosa por estar num sítio diferente e a duvidar de que conseguisse transmitir esperança e humor a quem quer que fosse, relembrei, vezes sem conta, as palavras dele. “Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum.” Pensei-o antes e durante a palestra, e exprimi-me da melhor forma que soube, com ele no pensamento. Com o coração na boca e os nervos em franja, consegui cumprir o que cá tinha vindo fazer. “Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum.”
A palestra terminou, mas a organização do evento decidiu oferecer-nos um presente, um presente com que eu não contava. Em jeito intimista e depois de partilharmos tantas emoções, entrou–nos o fado pelo auditório adentro, pela voz de três fadistas maravilhosas que me leram, derrubaram e invadiram, cantando ali, a dois passos de distância. A fadista ia cantando versos da Mariza, “sei que algum sorriso eu perdi”, e eu ia chorando e perdendo-me ali também, num monte de lágrimas e soluços estranhos. E os Açores ouviram-me. Ouviu um choro de meses, fechado há meses, guardado para aquele fado. “Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum.” Chorei e desesperei e deixei que o mar que aqui nunca acaba levasse tudo e permiti-me sentir todos os medos, todos os deslumbramentos, tudo o que coubesse cá dentro. Explodi aqui, nos Açores.
Voltei para casa. Ele não foi a lado nenhum enquanto estive fora. Voou pouco tempo depois. E hoje estou outra vez aqui, agora na ilha de São Miguel, a lembrar-me onde estava há um ano, com que forma, com que coração e a lidar, da forma que sei, com o aniversário da sua partida. “Confia, vai e desfruta. Eu não vou a lado nenhum”, e de facto não foste. Porque também aqui te sinto comigo, debaixo deste céu que está mais perto de nós.
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