A detenção de um espião português por traição ao país é caso único em Portugal. Carvalhão Gil é, ainda para mais, um fundador do Serviço de Informações de Segurança (SIS), chegou aos serviços em meados na década de 80, pouco depois de a agência ter sido criada e subiu a diretor de área, um cargo com responsabilidades de formação de novos elementos. O facto de ter “passado para o outro lado” suscita preocupações. “Não é por acaso que os documentos da NATO são classificados”, diz Rui Pereira, ex-secretário-geral das “secretas” portuguesas.
Um espião russo interessado em informações passadas por um espião português. Os contornos da operação “Top Secret”, conhecida no início da semana, suscitaram comentários de dúvida: que documentos tão sensíveis teria Carvalhão Gil em sua posse que pudesse interessar aos agentes secretos do todo-poderoso Vladimir Putin?
A resposta, deu-a José Milhazes, jornalista português com profundo conhecimento da realidade e interesses russos. “É preciso ter consciência de que, não obstante Portugal ser um país pequeno, faz parte de organizações importantes como a NATO e a União Europeia”, escreveu na sua coluna de opinião no “Observador”.
É verdade que Carvalhão Gil não tinha, atualmente, as mesmas funções que chegou a ter há década e meia. O incumprimento de “deveres funcionais como dirigente” nas secretas levaram Rui Pereira a demiti-lo de funções. O espião estava em Israel a acompanhar um grupo de formandos numa visita à Mossad quando a atenção que decidiu dedicar à companheira o distraiu das suas responsabilidades.
Mas isso não significa que não tivesse acesso a informação privilegiada. Ainda há poucas semanas, segundo o i apurou, o agente do SIS terá integrado uma formação operacional na NATO. Precisamente o tipo de informações a que os responsáveis russos pretendem chegar. “Deve-se ter em conta o facto de o Kremlin estar a realizar uma política externa agressiva e ofensiva, onde, além da componente militar, recorre também à diplomacia e a espionagem ofensivas”, sublinha José Milhazes.
Rui Pereira também sublinha a importância destes documentos para um país que joga a sua influência geopolítica fora de organismos como a NATO, em que os Estados Unidos, entre outros, têm grande poder de decisão. “Os documentos podem ser mais ou menos classificados, e os níveis de acesso a esta informação é diferenciada, mas um documento classificado da NATO tem sempre interesse, seja para o SVR [Serviço de Informação Estrangeira], o FSB [sucessor do KGB] ou o GRU [o maior serviço de informações russo]”, refere o ex-responsável das secretas.
Por essa mesma razão, um elemento ligado às questões de segurança refere ao i que “não se podem desvalorizar estas questões”. Para esta fonte, há duas razões que podem levar um agente secreto a ações como as que são imputadas a Carvalhão Silva: ideologia e dinheiro. Ou uma mistura das duas.
No caso do espião português, a partilha de informações fazia-se a troco de dinheiro. Dez mil euros por cada documento, escrevia ontem o “Público”. E não seria a primeira vez que o espião português negociava com o agente russo. Haveria, segundo fontes de segurança, uma “conta-corrente” aberta, sinal de que as viagens ao estrangeiro para levar novos dados – os encontros aconteciam sempre fora de Portugal – eram regulares.
Mas as motivações do espião português talvez não fossem apenas financeiras. Carvalhão Gil é um “marxista” convicto e nunca fez disso segredo, refere outro elemento ligado à segurança que conheceu o espião ainda na década da 1980.
Alemão aliado aos EUA
Foi há quase dois anos. O momento era quente, a diplomacia internacional vivia a ressaca das notícias de que a agência norte-americana de espionagem vigiava parceiros europeus. E Angela Merkel era uma das visadas nas operações.
Logo de seguida, um espião alemão era detido, suspeito de vender informação aos EUA (à imagem do caso de Carvalhão Gil). O caso foi mais grave ainda porque o espião estaria a passar informações sobre uma comissão parlamentar onde se analisavam as escutas da NSA a alemães.
Espião russo era banqueiro nos subúrbios de Nova Iorque
Não há uma razão para que um país decida infiltrar os seus espiões noutros países. Há várias razões – sejam em Estados “inimigos” ou até parceiros de longa data. Da mesma forma, também não uma fórmula fechada e repetida à exaustão para infiltrar os agentes secretos nesses países (seria, até, pouco eficaz).
Em janeiro do ano passado, agentes do FBI detiveram um suposto banqueiro do Bronx. O homem, de nacionalidade russa, era, na verdade, um espião ao serviço das agências daquele país. Vivia nos Estados Unidos com um propósito em mente: recolher informação sobre as sanções económicas que os norte-americanos preparavam a cada momento para aplicar a Vladimir Putin.
Evgeny Buryakov – é esse o nome do espião russo – não atuava sozinho. Também Igor Sporyshev e Victor Podobnyy tinham desempenhado missões nos Estados Unidos, enquanto elementos não oficiais do SVR, o serviço de informações estrangeiras.
Foram seguidos durante três anos, mas, no momento em que o FBI avançou para a detenção de Buryakov, os outros dois alegados agentes já tinham abandonado o país. Eram considerados personna non grata – uma designação que habitualmente se atribui aos agentes detetados – mas escaparam a uma expulsão.
Aliciar militares em Lisboa
Nos anos que se seguiram ao 25 de abril, Lisboa foi sendo “visitada” por espiões estrangeiros. E se, mais recentemente, o interesse destes agentes secretos se foi focando nos espiões portugueses – seja para obter informações sobre questões de segurança ou assuntos financeiros -, na altura eram os militares o alvo do aliciamento. Daí a importância das 2ª divisões – os Departamentos de Informação que os ramos das Forças Armadas mantinham ativos, e da Dinfo, a secreta militar que coordenava as operações de contra-espionagem numa altura em que não existiam os serviços de informações civis.
Quando os militares eram alvo de contactos – um convite para um café ou um jantar, feito por diplomatas e adidos em Portugal – era obrigatório passar essa informação à respetiva 2ª Divisão.
A luz verde para que os contactos continuassem era dada pelo departamento. A estratégia passava por reunir o máximo de informação possível e, no momento certo, avançar para a detenção dos espiões e do militar (para que não fosse classificado externament como traidor).
Os “inimigos” eram classificados como elementos indesejados no país e expulsos, e o processo corria sempre dentro das esferas militares – ao contrário do que aconteceu agora com Carvalhão Gil.
O diplomata “espião”
Uma mala com duas perucas loiras, três pares de óculos de sol, dinheiro e uma faca – Ryan Fogle, um diplomata americano destacado na Rússia, foi apanhado com um “kit de espião” com esses elementos há um ano. O episódio abriu nova crise diplomática entre os dois países.
Trabalhos forçados na Coreia do Norte
Kim Dong-chul nasceu na Coreia do Sul, mas acabou por naturalizar-se norte-americano mais tarde. Tinha 62 anos quando foi detido em Pyongyang, em outubro do ano passado. O regime norte-coreano ainda deu sinais de abertura para a negociação de uma saída do espião americano do país, mas, pelo caminho, a sentença foi pesada: em março, Kim Dong-chul acabou condenado a 10 anos de trabalhos forçados nos campos norte-coreanos, acusado de espionagem ao serviço da Coreia do Sul. O agente terá alegadamente admitido, perante os jornalistas, a colaboração com o inimigo a sul.