Estamos em 1829, na Praça da Figueira. O Hospital Real de Todos os Santos já tinha sido destruído pelo terramoto de 1755, mas ainda não tinha sido construído o famoso mercado. D. João vi já tinha morrido, mas a sua sucessão ainda não estava garantida. O hábito de ir tomar um café ainda não se tinha enraizado na nossa sociedade, mas a Confeitaria Nacional começava a servi-los com regularidade.
Este espaço histórico de Lisboa nasceu no início do século xix, logo após o início da Guerra dos Dois Irmãos, que opôs liberais constitucionalistas e absolutistas. Apesar da guerra civil vivida em todo o país e das inúmeras batalhas travadas em solo português, Balthazar Roiz Castanheiro não se deixou intimidar e decidiu criar o seu negócio em plena capital, num local que poucos anos antes fora destruído pela força da natureza. Apesar das dificuldades que ia enfrentar, Balthazar sabia o que estava a fazer – os seus ascendentes já estavam ligados ao negócio de matérias-primas para o setor. Alguns documentos descobertos recentemente (o mais antigo é de 1753) mostram que vários membros da sua família pertenciam a este ramo. Um dos documentos, redigido no reinado de D. Maria i (1803), mostra que Balthazar tinha sido eleito “Juiz mais velho” da Irmandade de Nossa Senhora da Oliveira, Padroeira dos Confeiteiros, lê-se no site deste espaço.
Para termos uma noção do quão depressa o tempo passa, a Confeitaria Nacional já existia há 35 anos quando ficou concluída a linha férrea que unia Lisboa ao Porto, a pena de morte só foi abolida três anos depois e só em 1869, 40 anos após a inauguração do estabelecimento, é que a escravatura foi oficialmente abolida no território português – esta foi proibida em 1761, passando Portugal a ser o primeiro país abolicionista. No entanto, o transporte de escravos para a América continuou a realizar-se até 1864. Só cinco anos mais tarde é que a escravatura é completamente abolida no Império Português.
Regressemos à inauguração. Apesar dos tempos conturbados que se viviam, este espaço começou rapidamente a ser frequentado pelas elites. Por ser uma novidade na capital portuguesa, era também ali que tudo acontecia.
Por exemplo, é na Confeitaria Nacional que, em 1871, é inaugurada a iluminação a gás, fornecida pela Companhia Lisbonense d’Iluminação a Gaz. Segundo o site do estabelecimento, “com o aluguer do contador (para 50 luzes), pagou-se nesse mês a ‘elevada’ quantia de 22$980”.
Os bolos dos reis Balthazar Castanheiro Júnior, filho do fundador, decide apostar na decoração da confeitaria. A sua renovação, em 1872, chegou a ser notícia no “Jornal Diário Ilustrado”: “Fundou um elegante salão, com gabinetes esplêndidos (…) tudo denunciando um certo bom tom, que, em definitivo, tem ali atraído as primeiras famílias da capital, a quem não foi difícil compreender a utilidade de um estabelecimento que em Lisboa é único no seu género.”
Para além disso, decide contratar os melhores mestres confeiteiros de Madrid e Paris, com o objetivo de aperfeiçoar a qualidade das iguarias. Este esforço acabou por ser recompensado – a Confeitaria Nacional conquistou vários prémios em exposições internacionais.
Mas o maior galardão foi conquistado em território português: em 1873, a Confeitaria Nacional pede o estatuto de fornecedor da casa real portuguesa e este acaba por ser concedido por alvará do rei D. Luís i. Os almoços e jantares reais começam assim a ser adoçados pelos mais variados bolos e sobremesas criadas nesta loja da Praça da Figueira.
A “mãe” do Bolo-Rei português Para chegar a este nível, a gerência da Confeitaria Nacional sempre apostou nos seus produtos, tentando inovar e, ao mesmo tempo, manter a tradição – o livro de receitas escrito pelo fundador desta casa em 1852 continua bem guardado. O que muitos não sabem é que foi neste espaço que começaram a ser comercializadas iguarias que hoje em dia fazem parte da gastronomia portuguesa.
“A Confeitaria Nacional orgulha-se de ter introduzido o Bolo-Rei em Portugal. A receita mantém-se inalterada até aos dias de hoje e apenas duas pessoas são detentoras do seu segredo – o proprietário atual e o pasteleiro mais antigo da Casa”, lê-se no site do estabelecimento.
“É também de salientar que temos pastelaria exclusiva nossa – a Meia Lua e o Austríaco, uma iguaria feita com base numa receita trazida por uma das crianças austríacas que durante a Segunda Guerra foram acolhidas pela família do fundador da Confeitaria”, explicou ao i Rui Viana, atual proprietário do espaço. “Há também muitos produtos que hoje em dia se encontram em muito poucas pastelarias, tais como os Coelhinhos, os Ninhos, as Rolhas e os Indianos. A Confeitaria Nacional tem também o seu café de marca própria, que é utilizado na loja e vendido sob a forma de cápsulas, grão e café moído”, acrescentou.
A dedicação à produção é um dos fatores que leva este estabelecimento – uma casa com 187 anos de atividade que nunca saiu da mesma família – a atravessar os reinados de D. Maria ii, D. Pedro v, D. Luís i, D. Carlos i e D. Manuel ii, a sobreviver ao Estado Novo e a crescer ao longo de três Repúblicas. Depois de ter conquistado o estatuto de fornecedor da casa real, a Confeitaria Nacional começou a abastecer a Presidência da República, uma tarefa que ainda hoje desempenha.
Passados quase 200 anos, milhares de pessoas continuam a entrar e a sair da Confeitaria Nacional. De acordo com a informação disponibilizada pelo estabelecimento, mais de mil pessoas passam por esta casa todos os dias. Estima-se que, ao longo destes anos, mais de 158 milhões de pessoas já ali passaram. Lisboetas, portuenses, algarvios, ingleses ou franceses – todos se rendem ao cheirinho a bolos que invade a Praça da Figueira há quase dois séculos.