Venham ver, senhores, venham ler, são histórias de família, são histórias de cinema! No fundo, o que são mesmo é histórias de Cannes. Todas elas contadas por filhos de Cannes, todas elas sobre a célula familiar.
Comecemos pelo filipino Brillante Mendoza, que pintou a manta em Cannes, em 2009, com o visceral e sangrento “Kinatai”. Mas que amansou – e de que maneira – logo no ano seguinte, quando apresentou no festival de Veneza o pungente e sensível “Lola”, sobre a estranha relação entre duas avós para tentar superar as consequências do crime em que um neto foi autor, e o outro vítima.
O cineasta que veio do mundo decorativo da publicidade para fazer o cinema mais despido de adornos que conhecemos apresenta agora “Ma’Rosa”, um filme onde regressa ao mesmo cenário das ruas de Manila, pejadas de miúdos de favela descalços na lama, de vendilhões. É aqui que encontramos Ma’Rosa, uma mulher, mãe de quatro, que tem uma loja pequena, um karaoke de bairro, mas que é forçada a vender droga para completar o orçamento familiar. Quando a polícia lhe bate à porta e a leva para a esquadra com o marido, ficamos também a perceber como em Manila tudo tem o seu preço. Desde logo, a liberdade, o que implica que sejam os quatro filhos a arranjar o que falta pagar aos polícias, ou seja, vender a televisão velha, pedir dinheiro a amigos e usurários ou, como acontece com o mais novo, vender o seu corpo. Sim, é o realismo de Manila, mas sem paninhos quentes nem a vontade de provocar lágrima no olho. É por isso gostamos tanto do cinema de Mendoza. Brilhante!
Em “Baccalauréat”, Mungiu, o senhor Palma de Ouro de “Quatro Meses, Três Semanas, Dois Dias” (2007), regressa ao cinema realista de onde nunca saiu, apesar de um desvio – “Para Lá das Colinas”, em 2012. Agora prepara-se (prepara-nos) para concretizar o sonho de ver a sua filha ingressar em Cambridge, uma das mais prestigiadas universidades britânicas, e fugir ao sistema romeno dos favores e dos compromissos. Pelo menos foi assim que o médico Romeo Aldea viveu a sua vida. Nada mais nada menos o que sucedeu com os nossos pais, certo? Talvez aqui e ali com uma ajudinha, um telefonema, uma troca de favores… Tudo normal.
Só que um pequeno azar bate à porta da sua filha Eliza (Maria Dragus), ao ser molestada, mas não violada, à porta da escola quase na véspera do exame final do liceu (baccalauréat em francês), provocando-lhe uma lesão no braço direito. Um inesperado solavanco nos seus planos que o leva a aproximar-se do diretor para que tenha em consideração a relativa incapacidade da filha, ao qual este reage bem, combinando uma marca para que a sua prova fosse identificada pelo professor que a corrigisse. Nem precisamos de desvendar qualquer spoiler, até porque Mungiu é suficientemente subtil para desenhar uma história de lugares- -comuns. Fica precisamente nestas zonas cinzentas onde ficamos irremediavelmente incapazes de poder antecipar uma reação moral de ferro.
É também desta forma subtil que o realizador romeno introduz na equação (o vírus) essa quase inevitabilidade da cedência, do favor e, por último, da corrupção, onde o peso da família, das influências e do dinheiro não é de desprezar. Por mero acaso, durante um intervalo para finalizar este artigo, deparámo-nos com um monitor de televisão que transmitia a conferência de imprensa, onde Mungiu referia que não daremos conta quando fizermos essa primeira cedência.
Por fim, em “Juste la Fin du Monde”, o puto canadiano Xavier Dolan mostra que é crescido (alguma vez foi garoto?), embarcando na adaptação ambiciosa da peça original de Jean-Luc Lagarce (e a quem Dolan dedica o filme), numa produção em que convocou a crème de la crème da representação francesa. A história desta família disfuncional conta-se assim: Gaspard Ulliel é Louis, um escritor gay que regressa a casa 12 anos depois para lhes dizer que vai morrer. Calma, não há spoiler porque sabemos isso logo desde o início. O que não sabemos é que será difícil demais passar a mensagem à mãe (Nathalie Baye), muito mais interessada em saber gossip lá da cidade, mesmo à irmã mais chegada, Suzanne (Léa Seydoux em versão desleixada) e muito mais ainda ao feroz mano Antoine (Vincent Cassel em versão tresloucada) ou à mulher, Catherine (numa versão tímida e hesitante).
Xavier Dolan é um realizador inteligente e o seu filme está longe de ser fraco. Ulliel tem um dos seus melhores papéis: não diz nada, mas sabemos o que se passa na sua cabeça. Por isso é eficaz o trabalho de Dolan, deixando a sua câmara acentuar todos os tiques desta família que vive, sem saber, um momento oposto ao dele. O que nos deixa mais reticentes é percebermos a inteligência de Dolan ao esforçar-se por deixar na tela toda a técnica para nos seduzir e até para seduzir o júri do festival. Dolan sabe que é brilhante. Mas o filme é só bom.