“Um partido de pessoas normais”


Há muito que a normalidade deixou de fazer parte da vida dos portugueses, quanto mais do partido e do país


Não é normal que tenha passado mais uma semana sem que o país tenha tido conhecimento dos nomes dos jornalistas e dos políticos avençados que constam das listas do GES. Não é coscuvilhice, é uma questão de higienização do país.

Não é normal que, em boa parte das contestações com medidas anunciadas, o governo procure mitigar as situações acenando com cenouras que em nada salvaguardam o interesse dos cidadãos, dos utentes ou dos alunos. Os taxistas protestam contra a Uber, agitam-se 17 milhões de euros para a modernização do setor; os camionistas ameaçam com protestos contra o preço dos combustíveis e avança-se com o gasóleo profissional para alguns; ou as escolas do ensino particular e cooperativo contestam a instabilidade dos percursos escolares provocada pelos cortes nos contratos de associação e tenta-se anestesiar a contestação com propostas de despesa pública no pré-escolar, no ensino profissional e no ensino artístico. O que para alguns é mero pragmatismo, para nós não passa de uma despudorada consagração da ideia de que tudo tem um preço e tudo é comprável. Algo normal para os talibãs do bitaite, que no espaço de 24 horas conseguem diabolizar os privados e, de seguida, defender o virtuosismo supletivo destes onde o Estado não foi, não quis ou não tem recursos para ir, por um período coincidente com os humores dos governantes de turno. Isto é coisa de gente politicamente séria e credível? É por isso que o investimento estrangeiro desconfia e o Presidente quase perdeu o pio. E quando fala é despeitado. Pediu diálogo e a resposta do governo foi um corte de mais de metade do financiamento do ensino público prestado por estabelecimentos particulares e cooperativos.

Não é normal que, na ânsia de afagar egos pessoais e partidários, a prioridade máxima seja dada ao reforço da popularidade junto de quem está dentro do sistema, na função pública ou nas órbitas de interesse, com indiferença perante o resto. Curiosamente, enquanto se discursa sobre o combate à precariedade, aumenta-se o número de funcionários públicos com contratos a termo, mais 5438 do quem em 2015 e mais 3731 do que no trimestre anterior. Vergasta-se a precariedade no verbo, pratica-se a incerteza laboral na função pública, enquanto se espalha sementes de imprevisibilidade na sociedade e se ignora a precariedade privada dos que não estão no sistema. Não votam, não contam na ação, só nos discursos.

Depois das reversões e das devoluções, sem impacto significativo no consumo, quase esgotada a cartilha dos temas fraturantes (falta a eutanásia e a prostituição) que conjugam avanços civilizacionais com manobras de diversão para desviar a atenção da realidade, e com pouca margem para continuar a dar sem que o encaixe para a distribuição seja ampliado, o mínimo que se exige é que, ao menos, os membros do governo estejam articulados no que dizem, para que não se consagre o domínio do “não é bem assim”. Por exemplo, nas 35 horas, para que o primeiro-ministro não diga que a “proposta que existe é que as 35 horas entrem em vigor para o conjunto dos trabalhadores em funções públicas no dia 1 de julho” e o ministro das Finanças afirme que existem situações localizadas que “requerem um período de adaptação que não coloque em causa nem o serviço público nem as finanças públicas”. O país não é a quadratura do círculo, onde se diz uma coisa e o seu contrário.

Com muito a dever à normalidade, no país e no governo, anuncia-se “um partido de pessoas normais”, desde logo na direção, cujo líder será eleito com cifras norte-coreanas para gáudio dos defensores da democracia, da liberdade de expressão e do pluralismo, sempre com taquicardias com a possibilidade de eclosão de um esboço de diferença ou divergência.

“Um partido de pessoas normais”, pelo poder, considera normal e engendra narrativas justificativas para que haja mais 6300 desempregados do que no último trimestre de 2015, o emprego no Estado tenha subido no primeiro trimestre de 2016, a dívida direta do Estado tenha aumentado 799 milhões em março, a produção industrial nacional tenha a quinta maior queda da União Europeia nesse mesmo mês, as exportações diminuam e as importações aumentem. Portugal foi o segundo país da Zona Euro que menos cresceu no primeiro trimestre. Pior, só a Grécia.

“Um partido de pessoais normais” pode inebriar-se com o irradiar de felicidade do sr. Presidente da República, com o solstício de uma experiência governativa com resultados no domínio do simbólico e demasiadas incertezas no plano da sustentabilidade das opções ou com a euforia em torno dos malabarismos da governação, mas quem já passou por tempos de poder e de oposição sabe quão efémeros são esses estados de alma.

Há muito que a normalidade deixou de fazer parte da vida dos portugueses, quanto mais do partido e do país. Não há país sem pessoas e a normalidade foi-se. No partido em que os políticos são considerados “anormais” resta o sectarismo. Já não é pouco.

Notas finais

Glorioso. O Benfica é tricampeão. Um padrão de normalidade que consagra a humildade, a resiliência e a competência do alverquense Rui Vitória como treinador de futebol. Há muitas variantes que não controlamos, mas nas que dependem de nós é dar o melhor que sabemos. Um presidente, um treinador, uma equipa e uma imensa massa adepta de papoilas saltitantes. No futebol como em muitas outras modalidades. Grandes!

Inspirador. As fontes de energia renováveis garantiram toda a eletricidade necessária para o país durante quatro dias, entre 7 e 11 de maio. Para colher é preciso semear, mas semeou-se pouco nos últimos quatro anos. Agora, quer-se colher sem semear.

Membro da comissão política nacional do PS

Escreve à quinta-feira


“Um partido de pessoas normais”


Há muito que a normalidade deixou de fazer parte da vida dos portugueses, quanto mais do partido e do país


Não é normal que tenha passado mais uma semana sem que o país tenha tido conhecimento dos nomes dos jornalistas e dos políticos avençados que constam das listas do GES. Não é coscuvilhice, é uma questão de higienização do país.

Não é normal que, em boa parte das contestações com medidas anunciadas, o governo procure mitigar as situações acenando com cenouras que em nada salvaguardam o interesse dos cidadãos, dos utentes ou dos alunos. Os taxistas protestam contra a Uber, agitam-se 17 milhões de euros para a modernização do setor; os camionistas ameaçam com protestos contra o preço dos combustíveis e avança-se com o gasóleo profissional para alguns; ou as escolas do ensino particular e cooperativo contestam a instabilidade dos percursos escolares provocada pelos cortes nos contratos de associação e tenta-se anestesiar a contestação com propostas de despesa pública no pré-escolar, no ensino profissional e no ensino artístico. O que para alguns é mero pragmatismo, para nós não passa de uma despudorada consagração da ideia de que tudo tem um preço e tudo é comprável. Algo normal para os talibãs do bitaite, que no espaço de 24 horas conseguem diabolizar os privados e, de seguida, defender o virtuosismo supletivo destes onde o Estado não foi, não quis ou não tem recursos para ir, por um período coincidente com os humores dos governantes de turno. Isto é coisa de gente politicamente séria e credível? É por isso que o investimento estrangeiro desconfia e o Presidente quase perdeu o pio. E quando fala é despeitado. Pediu diálogo e a resposta do governo foi um corte de mais de metade do financiamento do ensino público prestado por estabelecimentos particulares e cooperativos.

Não é normal que, na ânsia de afagar egos pessoais e partidários, a prioridade máxima seja dada ao reforço da popularidade junto de quem está dentro do sistema, na função pública ou nas órbitas de interesse, com indiferença perante o resto. Curiosamente, enquanto se discursa sobre o combate à precariedade, aumenta-se o número de funcionários públicos com contratos a termo, mais 5438 do quem em 2015 e mais 3731 do que no trimestre anterior. Vergasta-se a precariedade no verbo, pratica-se a incerteza laboral na função pública, enquanto se espalha sementes de imprevisibilidade na sociedade e se ignora a precariedade privada dos que não estão no sistema. Não votam, não contam na ação, só nos discursos.

Depois das reversões e das devoluções, sem impacto significativo no consumo, quase esgotada a cartilha dos temas fraturantes (falta a eutanásia e a prostituição) que conjugam avanços civilizacionais com manobras de diversão para desviar a atenção da realidade, e com pouca margem para continuar a dar sem que o encaixe para a distribuição seja ampliado, o mínimo que se exige é que, ao menos, os membros do governo estejam articulados no que dizem, para que não se consagre o domínio do “não é bem assim”. Por exemplo, nas 35 horas, para que o primeiro-ministro não diga que a “proposta que existe é que as 35 horas entrem em vigor para o conjunto dos trabalhadores em funções públicas no dia 1 de julho” e o ministro das Finanças afirme que existem situações localizadas que “requerem um período de adaptação que não coloque em causa nem o serviço público nem as finanças públicas”. O país não é a quadratura do círculo, onde se diz uma coisa e o seu contrário.

Com muito a dever à normalidade, no país e no governo, anuncia-se “um partido de pessoas normais”, desde logo na direção, cujo líder será eleito com cifras norte-coreanas para gáudio dos defensores da democracia, da liberdade de expressão e do pluralismo, sempre com taquicardias com a possibilidade de eclosão de um esboço de diferença ou divergência.

“Um partido de pessoas normais”, pelo poder, considera normal e engendra narrativas justificativas para que haja mais 6300 desempregados do que no último trimestre de 2015, o emprego no Estado tenha subido no primeiro trimestre de 2016, a dívida direta do Estado tenha aumentado 799 milhões em março, a produção industrial nacional tenha a quinta maior queda da União Europeia nesse mesmo mês, as exportações diminuam e as importações aumentem. Portugal foi o segundo país da Zona Euro que menos cresceu no primeiro trimestre. Pior, só a Grécia.

“Um partido de pessoais normais” pode inebriar-se com o irradiar de felicidade do sr. Presidente da República, com o solstício de uma experiência governativa com resultados no domínio do simbólico e demasiadas incertezas no plano da sustentabilidade das opções ou com a euforia em torno dos malabarismos da governação, mas quem já passou por tempos de poder e de oposição sabe quão efémeros são esses estados de alma.

Há muito que a normalidade deixou de fazer parte da vida dos portugueses, quanto mais do partido e do país. Não há país sem pessoas e a normalidade foi-se. No partido em que os políticos são considerados “anormais” resta o sectarismo. Já não é pouco.

Notas finais

Glorioso. O Benfica é tricampeão. Um padrão de normalidade que consagra a humildade, a resiliência e a competência do alverquense Rui Vitória como treinador de futebol. Há muitas variantes que não controlamos, mas nas que dependem de nós é dar o melhor que sabemos. Um presidente, um treinador, uma equipa e uma imensa massa adepta de papoilas saltitantes. No futebol como em muitas outras modalidades. Grandes!

Inspirador. As fontes de energia renováveis garantiram toda a eletricidade necessária para o país durante quatro dias, entre 7 e 11 de maio. Para colher é preciso semear, mas semeou-se pouco nos últimos quatro anos. Agora, quer-se colher sem semear.

Membro da comissão política nacional do PS

Escreve à quinta-feira