Algures entre o fôlego de uma bota ortopédica e um saco desportivo com um milhão e meio de euros está o novo filme de Luís Filipe Rocha. No meio nada, um nada que a julgar pelo espaço deixado ao silêncio parece poder ser tudo. “Cinzento e Negro” é um retângulo de vetores difusos, de correntes taciturnas a moverem-se por motivos distintos. Maria das Dores (Joana Bárcia) só pode descansar quando o copo que lhe retém a vingança for destruído, David (Miguel Borges) foge com o tal saco à tiracolo para um lugar onde nenhum bandido consideraria fugir, Marina é uma sereia de canto curto mas precisa de pescar à linha, sobra o inspetor Lucas, polícia em busca de redenção. Sobra a quinta e mais notável personagem deste filme: o Pico. Essa ilha-montanha que aqui, nevoeiro cinzento e negro, brancura de uma casa mais que modesta, vira paraíso onde todos querem acabar. Ao décimo primeiro filme Luís Filipe Rocha continua a perseguir a solidão humana.
Quando surgiu a ideia para este filme?
Em onze filmes é a primeira vez que comecei com uma imagem, verdadeiramente duas. Em 2003, fui a uma agência funerária encomendar um funeral de um familiar e a única pessoa que lá estava era uma mulher com uma bota ortopédica e coxa. Fixei essa mulher, até pelas circunstâncias em que a enfrentei. Três semanas depois fui ao Teatro de Almada e cheguei cedo, fiquei numa taberna, a beber uma cerveja naquelas duas ou três mesitas de ferro. Vi, do outro lado, passar a mulher da agência funerária carregada de sacos de plástico, deviam ser compras, ao lado dela um pintarolas de mãos nos bolsos, a fumar, pelo ar com que ia era o companheiro dela. E essa imagem sim, era a típica imagem de uma injustiça, de uma coisa tão feia que clamava por vingança. Isto em 2003.
Passaram-se muitos anos.
Sim, não tantos, porque comecei a escrever em 2008. Nos primeiros dois ou três meses mergulhei num estudo sobre as tragédias gregas, que são, para mim, um instrumental fundamental de pesquisa e análise sobre a alma humana, mais do que tratados de psicologia. Fi-lo para me aproximar à estrutura trágica, inventei um MacGuffin que já está estafadíssimo na história do cinema, um saco de dinheiro atrás do qual se corre. Depois lembrei-me do Jorge Luís Borges: “A literatura no século XX descartou o épico, felizmente hollywood deu-nos os westerns”. Nesse sentido, todo o cerimonial final tem uma estrutura westerniana.
Um processo demorado.
Um ano e meio, quase dois. Esperei muito pelas personagens, mais ou menos as vi, ao longe e depois não determinei sobre o passado e o interior das personagens, mas muito cedo na escrita apareceu o Pico.
Mais uma imagem, de uma agência funerária a um paraíso como aquele.
Uma vez apoiado nas tragédias gregas, que normalmente eram representadas ao ar livre, ao fim do dia e os teatros ficavam em planos elevados. A imagem do Pico vista do Faial é um palco trágico, desde cedo que o Pico apareceu como quinta personagem.
Este filme fala de uma fuga. A sua primeira longa-metragem chama-se “A Fuga”. Isto é obra do acaso?
Sim e não. Talvez o grande tema que atravessa todos os meus filmes é a solidão humana, essencialmente o ser humano, para mim, é um ser que está só. Também a fuga é recorrente, não obrigatoriamente por questões de solidão, mas porque para todos os seres humanos, eu sou um deles, há sempre o sonho da evasão, de acordarmos um dia num país onde ninguém nos conhece, sem passado e começar uma vida nova. Aliás, é o que diz o velho professor ao David, “pega no dinheiro e começa uma vida nova”, até porque a grande melancolia da velhice é não podermos ter uma segunda vida.
O Luís acredita nessa possibilidade?
Sim, uma segunda vida, a gente chegar a um sítio e começar uma página em branco.
E será possível encontrar acalmia na solidão, como o David?
Há anos que vivo fora de Lisboa, num sítio mais ou menos isolado. A maior parte do ano venho duas a três a vezes a Lisboa, se tanto, gosto de livros, como o David. Vivo rodeado deles, tranquilamente.
Mas o Luís não foi atrás de um saco de dinheiro. De que fugiu o David?
O velho professor diz-lhe: “O dinheiro é terrível, corrompe as pessoas, mas a vergonha é pior, afoga-lhes a alma”. Há uma espécie de uma vergonha que ele transporta, uma vergonha de ser inculto, inútil, que vive pendurado numa mulher com as características da Maria das Dores. Ele foge do que ele foi até ali. E foge para um sítio onde as pessoas que roubam dinheiro não fogem, essas vão para Miami.
É uma fuga quase irrealista.
Sim, claro, estamos a falar de um filme cuja aderência ao realismo no sentido dos meus filmes anteriores é diferente. As personagens são muito seres imaginários, e, portanto, solicitar ao meu filme coerências realistas é não querer entrar nas zonas mais profundas que lá estão.
A sinopse, curta e direta, serve também para manter esse ambiente encoberto e misterioso.
Claro, cinzento e negro. O título tem muito a ver com estas zonas mais profundas nas quais, neste filme, consegui mergulhar, são zonas cinzentas e negras daquelas quatro personagens. E sobre elas não sei mais do que o espetador.
Falemos da Marina, por exemplo, uma mulher que parece viver através de um balcão de café.
Disse à Mónica: “Imagina uma sereia plantada numa ilha no meio do atlântico, não a seduzir pelo canto ainda que a seduzir pela música francesa e pelo vinho branco, mas a pescar homens à linha. Esta foi a grande indicação, agora a gente percebe, até pelo ser da Mónica, que há solidão, há a relação dela com a pintura. Uma das coisas importantes neste filme é que entreguei aos quatro atores principais personagens que careciam de ser, “vocês tem que dar um ser vivo, carne, sangue, nervos e eu ajudo-vos a parir a personagem”.
Isso foi o que disse aos atores para os trazer a esse ambiente?
Exatamente. O Filipe Duarte transitou de “A Outra Margem” para aqui, os outros três nunca tinha trabalhado com eles. Os riscos que quis correr com este trabalho fizeram-me acreditar na minha intuição e na empatia que se estabelecesse entre nós. Entreguei o guião, falei e vamos a isso.
Como é que encontrou aquele monte incrível com aquela casa minúscula?
A primeira vez que fui ao Pico à procura de uma casa foi em 2012. Cheguei, aluguei um carro com um amigo, metemo-nos no carro, subimos logo pela Madalena e esta foi a primeira casa que vi. Não a consegui ver por dentro, fotografei, espreitei e pensei que ninguém conseguia filmar ali, então pu-la de parte. A casa é mínima, o estábulo nem sequer existe, fomos nós que o construímos. Só rodei em 2014 e aí fui ver o que havia de casas, vi uma única, em alternativa a esta, em pedra negra, mas a brancura no meio daquele verde dizia-me mais. A certa altura tive que dizer: “Meus amigos, aquela vai ter que ser a casa do David”. Depois percebi que roubar um saco com um milhão e meio de euros e ir viver para uma casita daquelas significa muito, mesmo muito, sobre aquela personagem.
Mais do que pedra negra, talvez?
Precisamente.
Tiveram contacto com os locais?
Nem por isso, aquela zona é bastante isolada, não há nada à volta. Até aquele banquinho é construído por nós. E depois o estábulo, que é uma belíssima invenção cenográfica da Isabel Branco. Tinha sempre imaginado, um bocadinho westernianamente, um estábulo exterior à casa, construção em madeira. Fiquei mesmo satisfeito.
Dizia há pouco que este não é um filme realista. Está quase nos 70 anos, fartou-se de abordagens mais políticas?
Nem por isso, é incómodo falar de mim neste sentido, mas tenho vindo a tentar aprofundar a minha procura e curiosidade humana, a minha inquietação. Filmo para tentar perceber o que não percebo, tem a ver com a relação humana, com a família, este aqui será aquele que, aparentemente, não tem família. O que não tinha experimentado era um território que é simultaneamente um passo mais para baixo, no sentido de tentar chegar ao interior das pessoas, mas é sobretudo um território novo do ponto de vista criativo.
Na ótica do processo, diz.
Sim, todo o processo, a própria música do Mário Laginha, por exemplo, foi um momento de grande lucidez minha tê-lo convidado. Agora o que acho é que todos os filmes são políticos, aliás a maioria deles até são descaradamente políticos na tentativa de evasão que fazem à cabeça das pessoas. Não é por acaso que aos 68 anos chego aos trágicos gregos, eu que fiz tragédia grega aos 20 anos no teatro.
Diria que o cinema é a sua fórmula de descoberta?
É, sim. Mas há uma questão que nunca escondi: desde pequeno que aquilo que mais fascinou nesta viagem foi ouvir contar histórias, e quem tem fascínio absoluto por ouvir, tarde ou cedo, começa a ter vontade de as contar. Os livros continuam a ser, ainda hoje, muito mais indispensáveis que os filmes.
Já havia solidão antes do cinema.
Sem dúvida, as histórias. E sobre essas queria dizer que acho que não as invento, são as histórias que me escolhem para serem contadas.
Colocando-se no lugar do velho professor era capaz de pedir ao David que o matasse e que fugisse com o saco, ou na posição do David era capaz de matar o professor?
Tenho que ser capaz das duas coisas. O Buñuel, que é um cineasta que admiro muito, dizia: “Ai do argumentista que diariamente não fornique com a mãe e não mate o pai”. Ai do argumentista que não consiga ir aos limites. Se tivesse no lugar do professor era perfeitamente capaz de o fazer. E do lado do David também.