Como seria “A Metamorfose” se escrita hoje? Talvez já não Gregor Samsa, o incansável caixeiro-viajante que sustenta os pais e a irmã, não já essa “certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos” em que dá por si transformado num “gigantesco insecto”, mas Yeong-hye, uma esposa coreana que, também na sequência de um sonho perturbador, toma a decisão de deixar de comer carne, torna-se vegetariana num esforço para se adaptar à existência própria de uma planta. A sua escolha logo assume os contornos de uma rebelião, não só pela forma como sacode a rotina da sua vida mas na medida em que se confronta com os hábitos e tradições dos familiares e daqueles à sua volta, colocando em crise o seu casamento.
“The Vegetarian” foi o livro que arrebatou o prémio Man Booker International, um livro com uma evidente dimensão política, e o primeiro da escritora sul-corana Han Kang (n.1970) a ser traduzido para inglês. Além da distinção daquele que é um dos mais prestigiados prémios da anglofonia, há o valor de 50 mil libras (64,3 mil euros) que é dividido equitativamente entre o autor e o tradutor da obra.
No ano passado foi anunciado que o Man Booker iria fundir-se ao Independent Foreign Fiction Prize, tornando-se anual em vez de bianual e passando a premiar um título em vez de toda uma obra, passando a ter como missão estimular a publicação no mercado de língua inglesa originais vindos apenas de línguas estrangeiras. Esta mutação vinca a importância da tradução. E Han Kang vai por isso dividir o valor do prémio com a sua tradutora Deborah Smith.
Smith, que tem 28 anos e é britânica, começou a aprender o coreano há apenas sete anos, quando se mudou para o país. De resto, foi por sua iniciativa que o livro foi traduzido e publicado, tendo a editora independente Portobello Books aceitado a sugestão. A tradutora e especialista em estudos coreanos foi também responsável pela tradução do segundo romance de Han, “Human Acts”, e fundou a Tilted Axis Press, uma editora sem fins lucrativos que promove a tradução de literatura africana e asiática.
Com 45 anos, a autora de “A Vegetariana” – romance será publicado no próximo mês de Outubro em Portugal pela Dom Quixote –, estreou-se enquanto poeta, publicando o seu primeiro romance em 1994. Ensina escrita criativa no Instituto de Artes de Seul e viu a sua obra obter sucesso tanto junto do publico como da crítica na Coreia, conquistando vários prémios. O júri do Man Booker, presidido por Boyd Tonkin, jornalista do “The Independent”, e composto pela antropóloga e escritora Tahmina Anam, pela poeta Ruth Padel e pelos académicos David Bellos e Daniel Medin, considerou a história tão “lírica” quanto “dilacerante”.
À semelhança da novela de Franz Kafka, este é um livro que a crítica tem exaltado pela sua carga alegórica, o tom sombrio, tantas vezes assustador. Uma escrita visceral, em que o tema central é uma vez mais a condição humana, e particularmente a feminina, oprimida e alienada pela sociedade moderna. “A Vegetariana” traduz um poderoso conflito entre a relação que temos com os nossos corpos e a forma como nos relacionamos com os outros. Uma narrativa em que poder e obsessão se cruzam no esforço de uma mulher para se libertar da violência que tanto a cerca como daquela que tem origem no seu interior.
Tonkin disse que a escolha do júri foi unânime, e descreveu a obra como “um poderoso, inesquecível e original romance que tinha tudo para ser distinguido”. Elogiou ainda a tradução de Smith pela “perfeita justeza” com que correspondeu à “estranha mistura de beleza e horror” que caracteriza o romance.
“Contada a três vozes, com três perspetivas diferentes, esta concisa, inquietante e linda história retrata a normal rejeição de uma mulher a todas as convenções e premissas que a ligam à sua casa família e sociedade”, adiantou o líder do júri quando anunciou o vencedor, citado em comunicado. O prémio foi anunciado na noite de segunda-feira no Museu Victoria e Alberto em Londres. “Este compacto, exímio e perturbante livro vai permanecer nas cabeças, e talvez nos sonhos, dos leitores”, acrescentou Tonkin.
Numa passagem nas primeiras páginas do livro, na voz do marido, lê-se: “Naquilo que me diz respeito, os únicos motivos razoáveis para alguém alterar os seus hábitos alimentares eram o desejo de perder peso, um esforço para aliviar determinadas doenças físicas, estar possuído por um espírito maligno ou ter o sono perturbado por problemas de indigestão. Qualquer outra hipótese não se trataria de nada senão pura obstinação de uma mulher se opor à vontade do marido como aconteceu com a minha mulher.” (Isto numa tradução livre e da nossa responsabilidade.)
Entre os seis finalistas, estava o escritor angolano José Eduardo Agualusa, o representante da língua portuguesa que foi mais longe nesta selecção até hoje.
Criado em 2005, o Man Booker pretendia distinguir a carreira de um autor de qualquer nacionalidade desde que publicados em inglês. A escolha dos finalistas deixou claro o intuito de representar uma perspectiva global do que de melhor tem sido publicado no domínio da ficção traduzida. Além de “A Vegetariana, e “Teoria Geral do Esquecimento” (D. Quixote, 2012), publicado em inglês com o título “The General Theory of Oblivion”, de Agualusa, numa tradução do britânico Daniel Hanh, estavam a concurso “A História da Filha Perdida” (Relógio D’Água, 2016), de Elena Ferrante; “A Strangeness in My Mind”, o último romance do Nobel turco Orhan Pamuk; “A Whole Life”, do austríaco Robert Seethaler (n.1966) e “The Four Books”, do chinês Yan Lianke.
Este alinhamento resulta de uma lista intermédia de 13 escolhas – na qual figurava a sublime novela “Um Copo de Cólera” (Relógio D’Água, 1998), do escritor brasileiro Raduan Nassar – e que partiu de um conjunto de 155 livros apresentados a concurso. Entre os vencedores das anteriores edições deste prémio incluem-se László Krasznahorkai (2015), Lydia Davis (2013), Philip Roth (2011), Alice Munro (2009), Chinua Achebe (2007) e Ismail Kadare (2005).
A Vegetariana
de Han Kang
Tradução a partir do inglês de Maria do Carmo Figueira
Dom Quixote
Publicação prevista para Outubro de 2016