Rui Vitória. Um gentleman por fora, um líder por dentro

Rui Vitória. Um gentleman por fora, um líder por dentro


O homem do momento é tudo menos polémico. No Vilafranquense, primeiro clube que treinou e onde jogou nove épocas, deixou um rasto de tranquilidade, liderança e tiques à João Pinto


Depois da conquista do tricampeonato pelo Benfica talvez seja mais fácil tratar o treinador responsável pelo feito pelo primeiro nome: Rui, porque o segundo – o Vitória, que intercalou esta época entre as piadas sobre se não seria o apelido errado, ou a sorte que  poderá ter trazido – já está gasto. O perfil sereno, a contenção nas palavras, a recusa de entrar nos bate-bocas consistentes com o técnico do Sporting Jorge Jesus (JJ), o seu “némesis” do futebol, não são uma moda que Rui inventou este ano para bater recordes como o maior número de pontos num campeonato português (88). São sim parte de uma postura na vida que fizeram de Rui “um gentleman em Alverca”, terra onde praticamente tudo começou, e um homem em que é raro encontrar defeitos, segundo quem lhe é próximo.

Pelo menos é assim que pensa Pedro Castelo, director de comunicação do Vilafranquense, emblema onde Rui passou onze temporadas, nove como jogador e duas como treinador, e que o convidou para liderar o clube há 14 anos, pela mão do seu presidente Machado Lourenço, uma semana depois de terminar a carreira de futebolista no Alcochetense. “Na altura do Rui no Vilafranquense eu era jornalista nos meios de comunicação regionais, tinha para aí uns 20 anos, e o presidente já o conhecia, ele era uma figura de referência, antigo capitão, e depois lá pegou  na equipa. É visto como um ‘gentleman’ aqui em Alverca, nunca ouvi ninguém a dizer: ‘não gosto do Rui’”, começa por contar ao i Pedro Castelo.

E nessa altura, quando a experiência no jornalismo era pouca, o técnico dos encarnados foi o primeiro com quem Castelo falou “que parecia mesmo um treinador”. “Tinha para aí uns vinte anos, andava para lá de microfone da mão. Quando o entrevistei perguntei-lhe como é que eu fazia para ser treinador. Ele explicou-me tudo, podia não ter ligado nenhuma”.

Um treinador preocupado Pedro ficou amigo de Rui, ainda mais depois de ter feito um estágio no Fátima quando o também professor de Educação Física (o treinador ribatejano começou a dar aulas aos 19 anos) andava por lá a treinar, e portanto, todas estas características de alguém que faz da união de grupo a chave para o sucesso, é assinada por baixo. “A gestão do grupo é o forte dele. Não tem medo de largar os jovens, nunca teve. Lembro-me que quando o Vilafranquense passou por problemas financeiros, ele abdicou do salário porque os jogadores não recebiam. Chegou até a mudar um treino para a manhã do dia de jogo para o plantel não se ter de deslocar em dias de semana. Disseram que era maluco, mas teve bons resultados”.

E quando as coisas corriam (ou correram mal este ano)? É simples, “mexe no meio campo”. Esse era o conselho que o seu adjunto eterno (desde o Fátima que é assim) Arnaldo Teixeira, mas também braço direito, amigo e colega da Escola Secundária Gago Coutinho em Alverca, lhe dava sempre que as coisas corriam para o torto, como confessou Castelo.

E comprova-se: basta olhar para o miúdo de 18 anos Renato Sanches, que se converteu no “pulmão” do meio campo do emblema da Luz e que agora vai andar pelo Bayern de Munique. Foi bom mexer por aí, diga-se.

Depois, Rui, “uma pessoa reservada” –  tanto que o ex-jornalista só soube do gosto pela  bateria este ano graças à comunicação social – “divertida com um ar bonacheirão”, voltaria a cruzar-se no caminho de Castelo quando este estava na BTV, já o treinador de 46 anos tinha assinado contrato para substituir JJ o ano passado, naquele que foi um dos verões “mais quentes” do futebol português. “A primeira vez que o encontrei no Seixal, ele voltou para trás para me cumprimentar e ficou a comigo. Era impensável para mim que o Rui fizesse aquilo. Continua a ser o mesmo. Nunca perdeu o norte”, termina.

Tiques à João Pinto Talvez tenha só perdido a oportunidade de ser um grande jogador. Moisão, ex-jogador do Vilafranquense, antigo “colega de cabine” (e pupilo mais tarde) de Rui  em Alverca, acredita nisso. “Na altura talvez não tenham aparecido oportunidades, ele era médio centro e metia a bola onde queria, comandava-a”. E até mesmo na marcação de penáltis demonstrava a tal postura tranquila e humilde: “ele chutava sempre para o lado esquerdo. E se o guarda-redes defendesse dava-lhe mérito”. Ou seja, nem quando calçava as chuteiras  despia o fato de gentleman. 

Quando Moisão chegou ao clube há 20 anos, já Rui era capitão, e uma voz que “servia de exemplo”. Tinha jeitinho com os pés e era um líder no balneário ao mesmo tempo. Teria assim algo mais característico, ou era um jogador bastante normal? “Ele metia a mão assim de lado como o João Pinto”, recorda a rir-se.

Como treinador, continuou igual ao que era em campo. “Foi sempre uma pessoa preocupada com os jogadores. Às segundas-feiras resolveu que nós tínhamos de dar a nossa opinião. Tremíamos  um bocado mas foi bom. E ficava tudo ali, não havia ‘fugas de informação’ para o exterior. O foco era o treino”.

Isso e ter sempre a lição bem estudada. Rui, durante as viagens, lia muitos livros e jornais, sempre no seu canto por “gostar muito do seu espaço”, quase como se não conseguisse retirar o professor que sempre existiu nele.

E se Pedro Castelo não sabia da alma de baterista que Rui tinha, Moisão lembra-se perfeitamente. “Nos almoços ele começava a gesticular com as mãos como se tivesse a tocar bateria. Era-lhe natural”, afirma. Parecia então o único momento em que o técnico português se libertava mais.

 Cá está o Rui, o gentleman, o tranquilo, o treinador de jovens, o bonacheirão, o estudioso, o reservado. Já não é preciso explicar mais. E o segundo nome? Esse ficou anteontem esclarecido, naquele que foi talvez o seu maior momento de libertação na carreira, pelo meio de gritos mais estridentes que riffs de bateria dos cerca de 200 mil adeptos que se deslocaram ao Marquês de Pombal para festejar.