Numa altura em que já foram exibidos mais de metade dos filmes em competição, começam a desenhar-se alguns candidatos à Palma de Ouro e aos prémios principais, que serão conhecidos no próximo sábado. Mas sabemos que alguns dos mais fortes candidatos estão ainda por descobrir.
Aquarius, a segunda longa-metragem do realizador brasileiro Kléber Mendonça, é uma das favoritas para a Palma de Ouro. Mesmo que o júri liderado por George Miller não se comova, mais difícil será ignorar Sónia Braga no papel Clara.
Mas há mais: Jim Jarmusch fez literalmente poesia em cinema com Paterson. Vimos ainda Julieta, o novo melodrama requintado de Almodóvar, Loving, com Jeff Nichols a provar que é o mais aplicado pupilo de Spielberg, e o consagrado Olivier Assayas e Kristen Stewart no mal-assombrado Personal Shopper. Sim, Cannes está a ferver!
Kléber é o evento de Cannes! Kléber e a sua equipa sobem as marches, a passadeira vermelha, para exporem ao mundo a sua contestação contra o novo governo de Temer. Uma sensação que contrasta com os aplausos colhidos na sessão de imprensa de Aquarius, um dos filmes mais aguardados em Cannes (desde logo por ser do único não ‘filho de Cannes’, a par da alemã Maren Ade, outra favorita da crítica, com Toni Erdmann).
Depois do muito promissor O Som ao Redor, passado integralmente numa rua de Recife, o realizador escolhe agora a orla da cidade no seu magnífico Aquarius, onde durante duas horas e vinte minutos acompanhamos a vida emocionante de Clara, uma pernambucana de gema, interpretada com garra por um Sónia Brada de 65 anos, assinalando, para já, a melhor interpretação feminina no festival. De longe. Até porque é uma espécie de instantâneo do Brasil de hoje.
Clara é uma ex-jornalista especializada em crítica musical, oriunda de uma classe favorecida do Recife, mas que sempre conviveu bem com o lado mais popular. Kléber, ele próprio um ex-crítico de cinema, escolheu para este filme uma banda sonora que representa uma fantástica memória musical do Brasil – somos surpreendidos com a emoção dada pelos temas de Gilberto Gil, Maria Bethânia ou Roberto Carlos.
Esta é história de uma mulher, mas também a de um edifício de dois andares dos anos 40, que foi sobrevivendo à voragem imobiliária local, ficando assim acantonado como a casinha do famoso filme da Pixar, Up – Altamente. Sobreviveu a um cancro do peito nos anos 70 e nunca perdeu a alegria de viver.
Ultrapassada a nostalgia da primeira parte, passamos a conviver com uma pressão ensurdecedora, da imobiliária e até mesmo dos filhos, para que a derradeira inquilina do imóvel se desfaça do seu apartamento. Onde a agressividade do empreiteiro promove diversos recursos, chegando mesmo a promover orgias nauseabundas no andar de cima, a participação de rituais de seitas religiosas e a uma operação final que deixamos para recordar, pois quase assume o foro de um filme de terror. O mais fantástico é que em todo este processo de pressão, Sónia Braga consegue devolver às personagens uma paz zen insuperável. Por isso mesmo, dizemos que a Palma de interpretação feminina lhe pertence.
Poema cinematográfico
Um outro filme que já nos deixou marcas foi o poema cinematográfico de Jim Jarmusch em Paterson. O filme fala-nos de um condutor de autocarro da cidade de Paterson, chamado Paterson. Ele é Adam Driver – o ator que no último Star Wars fez de Kylo Wren e que Paulo Branco contratou para o seu mega-projeto The Man Who Killed Quixote, de Terry Gillian. Driver interpreta o papel de um poeta que vive com a namorada, excelente cozinheira de cupcakes e artista com predileção pelo preto e branco e formas circulares.
E depois há este filme que adquire uma prosa cinematográfica como se de um verdadeiro poema se tratasse. É a simplicidade aliada a uma narrativa circular – próxima das Borges? – que se tece um filme de permanentes reencontros. Como as formas circulares das cortinas da casa de Paterson. Há casos em que na simplicidade se pode colocar muito cinema. É o caso.