A 8 de março de 1914, Fernando Pessoa criava o heterónimo Alberto Caeiro. O poeta ficou tão entusiasmado com esse pastor que o considerou seu “mestre” e disse da sua produção literária ser “o melhor que tenho feito”.
Jerónimo Pizarro (com Patrício Ferrari) acaba de reunir, pela primeira vez, a obra completa de Caeiro num só volume (ed. Tinta da China). O colombiano, que vem estudando a obra de Pessoa há 16 anos e é casado com uma portuguesa, respondeu às perguntas do i a partir de Bogotá, onde vive e dá aulas. Diz que não acredita na sinceridade de Caeiro, que detesta capelinhas e que tem saudades dos tempos em que era universitário em Lisboa e “chegava às aulas com sacos do Minipreço”.
O heterónimo Alberto Caeiro nasce como uma partida ao escritor Mário de Sá-Carneiro. Este nascimento está documentado? O que sabemos sobre o “dia triunfal” de 8 de março de 1914?
Nenhum nascimento fictício está propriamente documentado ou pelo menos não no dia certo. Além disso, faltam quase todas as cartas de Pessoa para Sá-Carneiro. Mas sabemos que esse dia, tardiamente, ficou a ser o chamado (por Pessoa) “dia triunfal”; e que, de diferentes hipóteses de dias ponderadas, o dia 8 de Março de 1914 ficou a ser o grande dia caeiriano na vida do criador dos heterónimos.
Como é possível que Pessoa, que era altamente consciente do seu valor, assumisse ter um mestre, ainda para mais um “ingénuo e simples”?
Eu não esqueceria uma máxima pessoana que Nicolás Barbosa lembra no artigo “A Man Without a Name”: “A reductio ad absurdum é uma das minhas bebidas preferidas”. Pessoa foi mestre de paradoxos e era difícil um paradoxo maior do que inventar um mestre inexistente e fazer desse mestre um anti-fingidor.
Pessoa refere-se à obra de Caeiro como “o melhor que tenho feito”. Estes elogios devem ser levados a sério ou fazem parte da “partida ao Sá-Carneiro”?
Fazem parte da promoção do Caeiro – que podia ter sido, em 1914, um poeta com projeção europeia – e fazem parte da consciência que Pessoa teve de ter escrito, em poucos dias, um livro de poemas relativamente coeso e irreparavelmente espantoso. É o melhor, porque é o mais antagónico ao paulismo e ao saudosismo, o mais singelo, o mais inesperado. E porque é anterior a outras obras espantosas, como a “Ode Marítima”.
A poesia de Caeiro deve ser considerada um elogio da simplicidade, por oposição ao pendor cerebral e filosófico, quase doentio, do ortónimo?
Deve, mas apenas se esquecermos que o poeta supostamente mais espontâneo é o maior fingidor. Caeiro guarda pensamentos. Os seus rebanhos são supostas sensações não mediadas pela mente. Se admitirmos que é possível escrever num papel o que está na nossa mente, sim, Caeiro é tão simples, que apenas sente e nós lemos as suas sensações. Mas como pode ser simples uma figura bucólica construída por um modernista irónico?
Não seria normal Pessoa achar que a satisfação com a vida demonstrada por Caeiro é uma manifestação de mediocridade?
A mediocridade implica insuficiência ou moderação. A meu ver, Caeiro sofre de suficiência e de exagero. Está sempre a afirmar a sua realidade e a realidade das coisas. Mas do que satisfeito, está sempre a constatar afirmativamente a existência. Faz-me sentir que eu existo, mesmo quando eu preferia inexistir, até que me lembro que é um heterónimo e respiro. Ufff!
Nas páginas da apresentação, levanta a dúvida se esta simplicidade é autêntica ou se Caeiro é o exemplo máximo da sofisticação de Pessoa. Conseguiu resolver esse mistério?
Caeiro é a elevação máxima do fingimento pessoano. Fingir que não se finge, e que se é um pastor, e que se está num outeiro, e que se tem um cajado, é uma forma irónica de assumir uma oposição. Aquele Pessoa que vivia entre cafés e escritórios da Baixa lisboeta não tinha nada de pastor.
Quando Caeiro fala em desaprender é como Picasso, que disse que queria acabar a pintar como uma criança?
É António Mora quem diz que Alberto Caeiro é um primitivo contemporâneo. Mas eu prefiro lembrar que Caeiro esteve doente e esteve enamorado, e que bastava algum tipo de cegueira fingida para que o Pastor deixasse de ver o mundo como pela primeira vez. Há um Caeiro-ideal e um Caeiro-real, e ambos convivem, e ambos fazem coisas que as crianças não fariam. Aliás, desaprender também pode ser uma ideia agnóstica, budista ou pós-moderna.
“Os rebanhos são os meus pensamentos”. Caeiro consegue controlar os pensamentos, ao contrário de Pessoa, que vive em angústia. O Guardador de Rebanhos é, nesse sentido, uma antítese perfeita do Livro do Desassossego?
É uma antítese do tipo de linguagem do Livro [do Desassossego], muito mais metafórica e cheia de devaneios. Mas Caeiro não controla os seus pensamentos, porque os seus pensamentos são sensações… Ou pelo menos é isso que diz. Acreditar em Caeiro? “Não, nem em mim”, para citar “Tabacaria”.
A ingenuidade de Caeiro manifesta-se no estilo? A sua escrita é menos cuidada, notam-se erros, deslizes, construções mal feitas, métricas mal medidas, repetições e cacofonias? Ao escrever como Alberto Caeiro, Pessoa suspende ou rompe com as regras da boa poesia?
Para já, a primeira pergunta que eu faço aos meus alunos é se os poemas caeirianos são poesia. Caeiro obriga a rever o que entendemos por poesia. Mas acho que a escrita caeiriana é elaboradíssima. Simplesmente, Caeiro adora os hiperónimos, quer fingir-se oral e apenas parece conhecer dois ou três bons poetas, como Cesário Verde. Mas a sua poesia, simultaneamente bucólica e moderníssima, não desmerece a poesia menos paródica dos seus contemporâneos.
Como escolhia Pessoa o nome dos seus heterónimos? Há alguma lógica por detrás deles?
Gostaríamos de pensar que havia uma lógica. Mas acho que há mais conjecturas do que lógica. Seja como for, há 136 casos que ainda estão para ser melhor estudados. E precisamos de ler Pessoa com uma atitude mais lúdica, e não com essa seriedade chata e demonstrativa dos que carregam as malas dos Senhores Professores em certas Faculdades…
Quando o Jerónimo veio para Portugal já conhecia alguma coisa de Pessoa ou só o descobriu cá? Pode falar-me um pouco dessa descoberta? Foi uma espécie de epifania ou de amor à primeira vista?
Conhecia, mas morri de amor (so to say) pelo arquivo e pelas fontes. Acho que depois de procurar fontes nas montanhas mais altas da Colômbia precisava de encontrar os regatos, como diria Caeiro, ou melhor, as nascentes dos rios pessoanos.
Tanto quanto sei, Teresa Rita Lopes e Fernando Cabral Martins foram seus professores na Universidade Nova e ajudaram-no a descobrir a obra de Pessoa. No entanto não refere os nomes deles nos agradecimentos. Porquê? Houve alguma coisa que fizessem ou dissessem que o magoasse?
Não propriamente, e já ri. Gosto da Teresa, mas ela nunca perdoou que eu mudasse de capela; gosto muito do Fernando, mas ele nunca perdeu a cabeça por uma folha manuscrita a várias tintas. Quando eu casei com o espólio, excomungaram-me (so to say, again). Mas agradeço à Teresa a sua irreverência e ao Fernando o seu olhar crítico. Lembro-me deles com saudades. Reencontro-os às vezes e gostava de voltar a ser o rapaz que chegava com sacos do Minipreço às aulas da Teresa e que discutia a sua dissertação com o Fernando no café do Príncipe Real.
Por que mudou de ‘capela’?
Fundamentalmente, porque mudei de Universidade e de área: da Nova para a Clássica, de Estudos Portugueses para Linguística Portuguesa. Mas não posso negar que detesto capelas.
Tem alguma página favorita nesta obra?
Bem, para continuar a brincar um bocadinho poderia ser “O pastor amoroso perdeu o cajado”. Mas amanhã poderia ser “Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro…” [“… E que ele me batesse e me estimasse…”].
Por que optaram pelo ortografia original? Fazer a revisão de uma obra assim deve ser um quebra-cabeças…
Sempre sugeri retornar à utopia inicial da INCM. Uma série maior mais conservadora; uma série menor, mais modernizadora. Quando este Caeiro do tinteiro (leia-se Tinta-da-china) chegar ao paperback, então provavelmente vamos des-originalizar a ortografia… O mínimo é desdobrar Pessoa, que tanto ensinou sobre desdobramentos…
O facto de a sua língua materna ser o espanhol alguma vez se revelou um problema? Por vezes pede à sua mulher para o ajudar a compreender certas palavras ou expressões portuguesas?
Quase nunca, e às vezes sonho em português. Mas a Inês é uma fada e eu gostava que ela fosse a guardiã de todas as minhas traduções e escritos. Escreve como se ela fosse o espírito da língua. Ensina-me a escrever, quer em espanhol, quer em português. Tanto que hoje colabora na escrita dos discursos do presidente da Colômbia e é um dos segredos melhor guardados do gabinete de comunicação da Presidência.