Proletários, antropófagos e provocadores

Proletários, antropófagos e provocadores


Se quisermos fazer um mini-balanço dos filmes que têm passado por Cannes, talvez as águas se possam dividir entre um cinema politico-socialmente empenhado e as propostas mais ousadas do ponto de vista estético e até de provocação ao espetador.


Ainda que esta possa ser uma subtileza para juntar vários filmes num só artigo, existem mais elementos que os unem do que o contrário.

Aliás, a Secção Oficial abriu com Sierranevada, numa nova e refrescante proposta da nouvelle vague do cinema romeno, com Cristi Puiu, pela primeira vez em competição depois de exibir os seus dois anteriores filmes, Aurora e A Morte do Senhor Lazarescu, na secção paralela Un Certain Regard, a levar-nos numa nova jornada de quase três horas ao seu habitual universo muito particular. É aqui que várias personagens, reunidas num ambiente fechado para comemorar os 40 dias da morte do pai da família, deambulam em conversas paralelas, entre os aperitivos e uma refeição, que se cruzam com os atentados Charlie Hebdo, as teorias de conspiração do 11 de Setembro e até mesmo aos desafios colocados à política externa americana, mas sem que isso transforme este filme numa qualquer arma de arremesso político. Até porque Sierranevada vale mais dentro de um registo mais formal do cinema de Puiu, onde uma câmara observa a ação entre os personagens, sugerindo-nos o tempo necessário para que se estabeleça uma história. Mesmo que o resultado não seja tão intenso quanto o anterior Aurora, de 2010, sobre os longos trabalhos preparatórios para um ato mais desesperado do protagonista – o próprio Puiu -, o que importa é que durante esse período foi como se estivéssemos mesmo reunidos com este grupo de pessoas, numa espécie de cinema comunitário.

Numa versão bem mais carregada do que foi acima exposto, relata a trama do filme egípcio que abriu a secção Um Certain Regard, Clash, de Mohamed Diad. A proximidade com Puiu é clara, já que a ação decorre integralmente dentro de uma carrinha celular, em que cerca de uma dúzia de manifestantes se acotovela após ser detido em sequência das manifestações que depuseram o Presidente Morsi em 2013. No entanto, dada essa especificidade formal, dificilmente o filme consegue sair do nível das boas intenções, aliadas a alguma ingenuidade. E nem valerá a pena referir um filme como Twelve Angry Men/Doze Homens em Fúria, o clássico americano de Sidney Lumet, de 1957, totalmente passado dentro de uma sala de júris para chegar a uma decisão sobre um acusado.

Por fim, o filme mais vincadamente social, proletário mesmo, é I, Daniel Blake, de Ken Loach, o tal cineasta operário que em I, Daniel Blake faz com que a palavra de ordem seja um ataque cerrado contra o sistema de assistência social britânico, em que o sujeito que dá o seu nome ao título luta até ao fim para receber a sua pensão por invalidez. Mas o mais surpreende, pela positiva, é tratar os temas mais dramáticos em estilo de comédia. Ken Loach é o cineasta recordista de Cannes, com a sua 13ª presença em competição, superando mesmo Woody ALlen, presente também 13 vezes, mas nem sempre a concurso.

E este é com este estilo de comédia que introduzimos a comédia Ma Loute, de Bruno Dumont, em que a caricatura de personagens carregadas a traço grosso, em ambiente de época, funciona como uma espécie de filme-gémeo de o genial O Pequeno Quinquin, o tal telefilme de três horas em redor de um peculiar caso policial.