O recurso aos académicos como matéria-prima para a formação de governos tem grande tradição em muitos países. Seriam garante de qualidades intelectuais e de uma qualquer pureza apolítica que permitiria diluir os excessos de partidarismo presentes num qualquer executivo. Salazar recrutava muitos dos seus ministros por entre os lentes, primeiro na Faculdade de Direito de Coimbra e, depois, na de Lisboa. Em Portugal, a academia nunca deixou de contribuir generosamente para a formação de todos os governos constitucionais. Nos Estados Unidos, a universidade abasteceu sucessivas administrações presidenciais, sendo Kissinger a quinta-essência do académico que se celebrizou nos corredores do poder. Ahmet Davutoglu, professor de Ciência Política e de Relações Internacionais, começou o percurso político como conselheiro de Erdogan quando este era primeiro-ministro, passou a ministro dos Negócios Estrangeiros e ascendeu em 2014 a primeiro-ministro e a líder do Partido da Justiça e do De-senvolvimento (AKP) quando Erdogan foi eleito Presidente da República.
A fusão entre o académico e o político nem sempre dá origem a uma simbiose. Em muitos casos predomina a dimensão académica e os choques com a realidade sucedem-se. Noutros, a dimensão política torna-se dominante e tende a apagar as origens do governante, situação que pode desagradar a quem recrutou um académico que se desejava tecnocrático, submisso e agradecido, e vem a descobrir que tem um candidato a político.
Davutoglu não escapou à maldição dos académicos emprestados à política. Depois de vários conflitos surdos, o desagrado de Erdogan com Davutoglu fez-se sentir com a revogação do poder de nomear os dirigentes locais do AKP. Se quem “manda” – o primeiro-ministro – não pode nomear os dirigentes locais do partido que está no poder, quem manda é outrem. O professor de Ciência Política Davutoglu percebeu-o e anunciou a demissão.
A Davutoglu se deve um papel mais ativo da Turquia no campo das relações internacionais, procurando disputar o título de potência regional num espaço já repleto de candidatos: Egito, Irão, Arábia Saudita e, em dias de alguma megalomania, Qatar. O neo-otomanismo e o pan-islamismo foram usados com inteligência para melhorar o relacionamento com os diversos vizinhos numa região em que o conflito é fácil e as alianças fugazes. Muito pela mão de Erdogan, esta política externa foi sendo posta em crise.
A Turquia faz parte da NATO, pelo que a animosidade de Erdogan em relação aos vizinhos, desde logo em relação à Rússia, pode criar problemas ao Ocidente. Na sua mais recente tirada, acusa a NATO pela sua falta de reação à ameaça russa, considerando que o mar Negro se tornou “quase um lago russo”. A retórica de Erdogan irá subir de tom até à Cimeira da NATO em Varsóvia, a 8 e 9 de julho.
A demissão de Davutoglu acelera a deriva autoritária de Erdogan e faz desaparecer da cena política internacional um negociador muito hábil, com consequências imediatas no relacionamento entre a União Europeia e a Turquia. Nas negociações com a UE, Erdogan, que não quer e não sabe negociar, irá acumular exigências cuja rejeição permita a vitimização e mobilizar o eleitorado do AKP (o campesinato da Anatólia e os migrantes rurais transformados em suburbanos nas grandes cidades). A existência de vários inimigos externos justificará a concentração de poderes em torno do presidente. Erdogan apostará, mais uma vez, em eleições antecipadas para aumentar a sua base de apoio parlamentar e rever a Constituição.
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