Marcelo. Meios diplomáticos preocupados com gafes do Presidente

Marcelo. Meios diplomáticos preocupados com gafes do Presidente


Fracasso da visita a Moçambique, polémica sobre Acordo Ortográfico e anúncio antecipado de visita a Angola são vistos na diplomacia como falhas da Presidência.


O voluntarismo de Marcelo está a deixar os meios diplomáticos à beira de um ataque de nervos. Fontes diplomáticas ouvidas pelo i pedem “prudência” a Rebelo de Sousa e lembram que o Presidente da República não tem competências em matéria de política externa. A forma como foi gerida a viagem a Moçambique e as declarações sobre o Acordo Ortográfico são vistas como “desastradas”, sobretudo tendo em conta o momento sensível que se vive na CPLP.

“Há 60 embaixadas em Lisboa, a esmagadora maioria vai enviar hoje relatórios para as respetivas capitais com a capa do i de ontem, reportando a reação de Cabo Verde e da CPLP na questão do Acordo Ortográfico como um conflito protagonizado pelo Presidente da República”, assegura um diplomata.

“Era escusado”, aponta outra fonte, que vê amadorismo na forma como Belém está a gerir a intervenção do Presidente em matérias diplomáticas. “Em diplomacia não se improvisa”, frisa a mesma fonte.

Um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros critica mesmo o facto de Marcelo “ter mandado dizer à imprensa que ia a Moçambique servir de intermediário no conflito entre Frelimo e Renamo, quando depois se percebeu que, estando lá, não tinha condições para desempenhar esse papel”. O ex-governante ataca também as intervenções de Rebelo de Sousa sobre o Acordo Ortográfico. “O Presidente é professor de Direito Constitucional e tem obrigação de saber até onde vão as suas competências. Se as posições forem acertadas com o governo, muito bem. Se não, são uma gafe”, defende a mesma fonte.

Nos meios diplomáticos há mesmo a ideia de que Marcelo pode estar a ser mal assessorado nestas matérias. “É um risco enorme anunciar uma visita a Angola sem ter a certeza absoluta de que há condições para ela acontecer. Em diplomacia não se dão tiros sem se ter a certeza de que vão acertar”, comenta uma embaixadora.

os poderes do presidente A questão sobre se o Presidente deve ou não ter competências em matérias de política externa é antiga. Mário Soares chegou a pedir a constitucionalistas que fizessem um livro sobre o tema. E Cavaco Silva que, como primeiro-ministro, defendia que esta era matéria da competência exclusiva do governo, também seguiu o mesmo caminho.

“Há várias interpretações constitucionais. Mas a verdade é que o Presidente não tem serviços diplomáticos nem emissários e até as visitas ao estrangeiro têm de ser concertadas com o governo para serem previamente preparadas pelas embaixadas”, aponta uma fonte diplomática.

Aquilo de que Belém dispõe é de uma equipa diplomática para analisar e selecionar os mil a 1500 telegramas diplomáticos diários que o governo pede às embaixadas para enviarem com conhecimento para a Presidência. “É uma prática que existe desde os tempos do general Eanes, para garantir que o Presidente está bem informado em matérias de política externa, mas não há qualquer obrigação do executivo”, esclarece a mesma fonte.

Numa coisa todas as fontes contactadas pelo i estão de acordo: é essencial que haja coordenação entre Presidência e governo.

“Deve haver prudência e muita concertação com o governo”, defende a socialista Ana Gomes que, até ao momento, não vê sinais de que não haja essa cooperação com o executivo de António Costa, mas insiste na necessidade de que “um voluntarismo, que até pode ser positivo, por parte do Presidente seja acompanhado por uma avisadíssima preparação diplomática”.

De resto, nos meios diplomáticos acredita-se que o problema destas intervenções de Marcleo estará, pelo menos para já, mais no plano externo do que no interno. A ausência de críticas públicas do governo – que só interveio para acalmar a polémica do Acordo Ortográfico – é lida como um sinal de que António Costa não se opõe a estas incursões do Presidente na política externa.

O que fica ainda por perceber é até que ponto estas posições são previamente alinhadas com o governo. É sabido que Costa e Marcelo falam com frequência, mas aquilo a que os embaixadores chamam “gafes diplomáticas” de Belém pode denotar pouca preparação prévia.

A verdade é que a viagem a Moçambique falhou o objetivo diplomático anunciado. “Não foi um sucesso”, admite Gustavo Plácido dos Santos do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS).

Apesar disso, Plácido dos Santos não é tão crítico da iniciativa como outras fontes ligadas ao meio diplomático. “Teve a vantagem de colocar Portugal no centro de uma questão de política externa importante”, considera o especialista.

Gustavo Plácido dos Santos frisa, contudo, que “o Presidente da República não tem competências em matéria de política externa”. E confessa não ter percebido sequer a intenção da intervenção presidencial sobre o Acordo Ortográfico.
“Foi precipitado. Não terá sido muito prudente”, comenta Gustavo Plácido dos Santos, lembrando que ainda há pouco tempo a CPLP viveu um momento tenso a propósito da escolha do novo secretário-geral e que só isso seria suficiente para evitar entrar em polémicas.

Marcelo recua Ontem, o Presidente da República tentou pôr alguma água na fervura do tema do Acordo Ortográfico. 
“É um não tema. É uma não questão”, limitou-se a responder aos jornalistas que tentaram obter uma reação às palavras duras que o assunto valeu do ministro da Cultura de Cabo Verde e das declarações do secretário executivo da CPLP que quis pôr uma pedra sobre um debate que o Presidente reabriu.

Antes, já o assessor para a Cultura de Marcelo em Belém, Pedro Mexia, tinha em declarações ao i frisado que “o Presidente não é um militante anti-acordo”.

Era já uma tentativa de controlar um tema que valeu a Marcelo uma intervenção do ministro dos Negócios Estrangeiros e número dois do Governo, Augusto Santos Silva, para pôr uma pedra sobre o assunto.

A reação mais dura sobre a ideia de Rebelo de Sousa de que ainda seria possível reabrir o debate em torno da ortografia veio, contudo, de Cabo Verde. “O Acordo Ortográfico não pode ser uma decisão leviana de opiniões de políticos que estão transitoriamente nos cargos”, disse o ministro da Cultura Abraão Vicente, criticando o “questionamento dos países maiores” – Portugal pela voz de Marcelo e Moçambique e Angola por ainda não terem ratificado o Acordo.