A Fundação Francisco Manuel dos Santos acaba de trazer a lume mais um extremamente benfeito relatório, desta vez sobre a fecundidade (“Inquérito à Fecundidade”), o qual vai ser divulgado e debatido durante este mês de Maio, considerado o Mês da População. Numa altura em que Portugal atinge recordes de baixa natalidade, as dificuldades que se deparam a um casal que deseja ter filhos são cada vez maiores. Este fenómeno social pode levar a um razoável grau de apreensão e têm sido vários os profissionais e instituições a chamar a atenção para os efeitos secundários daqui decorrentes.
A quebra nas taxas de natalidade e de fecundidade não é nova – há mais de 20 anos que, no nosso país, se observa uma descida no número de nascimentos, sendo Portugal um dos que lideram o pódio da natalidade mais baixa.
Ter filhos deve ser encarado como um fator positivo, quer a nível da família, quer da sociedade e da própria nação. Nem sempre o é. Mas para lá das opções individuais, que devem ser totalmente aceites e não estigmatizadas, há obstáculos e (quase) um certo grau de desconfiança relativamente a engravidar – não pelos pais ou pelas pessoas individualmente, mas pela sociedade em geral -, o que culpabiliza, na teoria e na prática, quem atualmente “tenha a coragem” ou “caia na asneira” de decidir ter uma criança. Para que não fiquem dúvidas, tenho para mim que a baixa da natalidade no nosso país é um “sintoma de responsabilidade” e não um acaso, um sinal de que os portugueses se amem menos, tenham menos relações ou façam mais interrupções de gravidez. O que se passa é que, felizmente, pensa-se mais nas consequências dos atos, a curto, médio e longo prazo, e no efeito que aqueles podem ter não apenas nos próprios, mas numa perspetiva sistémica. Só isso… Mas “tanto isso”… E tão importante como isso. Os pais é que decidem se desejam, querem e podem ter filhos. Nada nem ninguém, seja o Estado, a família, os amigos ou até os outros filhos, devem ter qualquer palavra sobre o assunto. É uma questão íntima e solitária de duas pessoas que avaliarão os seus desejos, pulsões, circunstâncias, contextos, oportunidades e vontades.
Portugal passou rapidamente de um período em que a natalidade era muito alta para uma fase de muito poucos filhos por família. Nos anos 60, mais de metade das crianças que nasciam tinham mais de cinco irmãos. Hoje, quase dois terços são primeiros filhos. Claro que há explicações para este facto que não posso estar agora a esmiuçar. Para lá disso, as pessoas adultas, numa sociedade com o nosso nível civilizacional, têm uma vida que é constituída por um puzzle multifacetado que comporta “n” vertentes, e ter filhos não é o único desígnio de um homem ou de uma mulher. Aliás, assim como deve haver o direito a ter filhos, deve ser consagrado o direito a não os ter, e sobretudo o dever de não se emitirem juízos de valor ou de caráter relativamente às pessoas que tomam uma ou outra decisão.
Porventura é de mais difícil compreensão a atitude da sociedade em geral. Que os casais não queiram ou não possam ter mais filhos, entende-se bem. Mas porquê então, numa altura em que os bebés já são tão poucos, as constantes dificuldades a que têm de fazer face na vida do dia-a-dia, desde a legislação aos empregos, passando pelos atendimentos diurnos (creches, infantários), impostos, preços dos produtos para crianças, apoio social ou abonos, para só mencionar alguns aspetos?
Que dizer, por exemplo, de uma legislação ainda insuficiente sobre a licença de parentalidade, do tempo dispensado para cuidados a prestar à criança quando está doente, dos abonos de família ridículos, da falta de descontos adequados no IRS, por exemplo para artigos infantis, de puericultura ou de segurança infantil? Nota-se desprezo e falta de interesse por parte do Estado português. As crianças não votam e não produzem, portanto servem para pouco. Só com medidas estruturais e políticas concertadas será possível promover gerações saudáveis e protegidas que levam um país a patamares superiores de direitos humanos e bem-estar económico e social.
As dificuldades e obstáculos crescem como cogumelos, muito para lá da vontade dos diversos ministros e dirigentes. Poderá compreender-se que há razões económicas e logísticas, mas o que existe, sobretudo, é uma incapacidade de mudança da mentalidade de quem detém o poder nos vários níveis, e não apenas ou até nem principalmente nos gabinetes ministeriais.
Caminhamos para uma sociedade que parece desejar combater os únicos elementos que podem assegurar a sua sobrevivência: as crianças e os jovens. Há que fazer algo, mudar mentalidades e atitudes, reconhecer em cada criança não uma falha do planeamento familiar, não o fruto de um ato impensado ou indesejado, não uma carga de trabalhos, não um “mal necessário”, mas sim uma vida cheia de potencialidades e de valor, um bem de valor incalculável. Para lá dos direitos já reconhecidos internacionalmente, há que levar à prática esses direitos, consagrá-los na legislação e velar pelo seu cumprimento. Para isso é preciso que a sociedade civil seja mais exigente e solidária e que os políticos e decisores ouçam o que os técnicos têm a dizer – este relatório da FFMS é exemplar.
Por outro lado, há que respeitar todos os que, por decisão pensada, informada, racional e até emocional, optam por não ter filhos. É um direito e não deverão ser olhados de soslaio ou tidos como pessoas que, afinal, “estão a consumir, não deixando prole para sustentar as nossas reformas”.
É imperioso respeitar a liberdade individual, sobretudo quando toca a assuntos íntimos, privados e sobre os quais, verdadeiramente, ninguém tem de opinar, mas ou alguém se mexe ou Portugal irá definhar e o tecido social fragmentar-se e desconjuntar-se nas próximas décadas.
Pediatra
Escreve à terça-feira