Foi dele o maior desassossego, que o levou ao suicídio, ingerindo cinco frascos de estricnina, cansado de cada vez poder menos deixar de ser Eu e cada vez sofrendo mais por ser Eu. Aos 25 anos, o sofrimento já nem sequer se traduzia em oiro literário, apenas o corroíam os nervos, “os estuporinhos, não há quem os faça largar o trapézio”, e “uma vontade imensa de me embebedar, mas nos ossos”, “uma inquietação eterna, um medo fixo”, todo o quebranto. Confessou-o em cartas pungentes de sinceridade, ao grande e maior amigo, Fernando Pessoa, a quem sempre pediu: “Não se esqueça de me dar a sua opinião.”
Mário de Sá-Carneiro (n. 1890), poeta e ficcionista, membro brilhante do primeiro grupo modernista português (Geração d’Orpheu), morreu há cem anos (em 26 de abril de 1916). A celebração conta com a edição da sua prosa completa, pela Dom Quixote, acompanhada por quatro testemunhos de Pessoa após a morte do amigo (um horóscopo, um texto e dois poemas) e por uma cronologia biográfica assinada por Fernando Pinto do Amaral.
O volume inclui oito contos breves de juventude publicados na revista “Azulejo” (1908/1909), o primeiro livro de narrativas (“Princípio”, 1912, páginas escritas entre os 18 e os 22 anos e dedicadas ao pai), a novela “A Confissão de Lúcio” (1913) e o volume “Céu em Fogo – Oito Novelas” (1915). São cerca de 500 páginas que exibem as estranhezas de uma sensibilidade peculiar, a maior parte das vezes mórbida, sempre devotada à procura da melhor descrição para o choque entre o que se sente, o que se desejaria sentir e o que se vive.
O tratamento neorromântico do tema da Morte marca o conjunto, surgindo logo em dois textos iniciais: uma história em torno de um caixão que é afinal um adereço de teatro e outra, a de Ladislau Ventura, o “sombrio herói” que se submete à tragédia (homicídio e suicídio) para conquistar a fama póstuma. Na linguagem e no estilo, bem como nos enredos e personagens, exprime-se a atração (decadentista) pela fuga ao real quotidiano, encarada como tarefa pessoal e consumada na fantasia, na associação do amor à violência ou num mergulho no inconsciente, na loucura e na morte.
Vanguardista (também em temas como a mudança de géneros ou a perversão erótica), Sá-Carneiro, “a criança triste em quem a Vida bateu”, sonha durante toda a vida superar a banalidade, exprimir a excentricidade do estado de alma, até mesmo assumindo a loucura como “órgão do sexto sentido”. A sua prosa testemunha-o, desde o conto inicial “Loucura…” e a criação da “singularíssima psicologia” do escultor Raul Vilar até à figura do artista intersecionista Petrus Ivanowitch (em “Asas”) e ao último conto (“Ressurreição”), protagonizado pelo alter-ego e “personagem-padrão”: o romancista Inácio de Gouveia, autor de “obras esquivas, roçagando miragens, extáticas de ouro, ungidas de Incerto, tigradas de orgulho, leoninas na ânsia”.
Na prosa, como na poesia, Sá-Carneiro tenta superar as limitações da vida real, através da expressão do que é vibrátil, das sensações e imagens exuberantes que permitem, talvez, uma fusão com as pessoas e as coisas, sentir tudo de todas as maneiras até ao paroxismo. No limite, o uno torna-se duplo e desdobrado, capaz até de morrer ele mesmo no lugar do outro (expressão máxima do tema do duplo, desenvolvido desde o conto “O Incesto” até à obra-prima “A Confissão de Lúcio”). No limite, a megalomania do artista leva-o ao suicídio, final heroico de quem um dia lamentou: “Que náusea! Que náusea! Não se ter ao menos o génio de se querer ter génio!…”