Porque é que sentimos mais (nas emoções, nas conversas, no coração, nos tempos de antena) as dezenas de mortos de um atentado esporádico em Paris do que as centenas de mortos diárias no Médio Oriente? Porque é que algumas situações, casos pessoais ou episódicos nos tocam tanto e outros nos deixam indiferentes?
Quando dizemos a outro que tem uma doença, que é refugiado ou a quem morreu um ente querido, “sei o que estás a passar!”, será que sabemos mesmo? Será possível sentir minimamente o sentir dos outros em ocasiões tão dramáticas? Poderá chegar a nossa empatia a esses níveis?
A empatia é a capacidade de sentirmos em nós as razões e o sofrimento dos outros. A falta dela, resultando em indiferença, é uma das maiores causas dos desrespeitos aos direitos dos outros. O estado de entendimento empático consiste em perceber as referências internas do outro com os significados emocionais que contêm, como se fôssemos a outra pessoa, ou seja, conseguirmos entender e adivinhar o que o outro sente, ainda mais quando é alvo das nossas palavras ou ações.
Ser empático implica sentir a dor ou o prazer do outro como ele o sente e perceber as suas causas como ele as percebe, mas sem esquecer que se trata da dor ou do prazer do outro e não dos nossos, ou seja, não nos apropriando do que apenas aos outros pertence.
Isto não deslustra em nada a nossa capacidade empática. Não temos de estar em Auschwitz ou nos campos de refugiados em Calais para considerarmos abjeto o que se passou e passa. Não temos de sofrer a tortura da água para nos “torcermos” com o que sabemos existir em tantas prisões por esse mundo. Também não é preciso ganhar o Prémio Nobel ou marcar um golão à Ronaldo para imaginar como deve ser fantástico e como os protagonistas devem estar em êxtase. A condição humana empática é a pena ou a satisfação (conforme o caso), a solidariedade.
Uma pessoa ensinada dentro de limites éticos aprende a controlar os impulsos, regular as emoções, desenvolver a inteligência emocional e respeitar os outros, não apenas por receio das consequências de agentes externos, mas pela satisfação de estar bem consigo próprio e de marcar pontos no jogo relacional. Sermos “pobres dos outros, embora ao mesmo tempo ricos de nós” é, afinal, isso mesmo: sentir que a sorte dos outros não nos é indiferente e que, quando eles sofrem, nós sofremos também.
Fernando Savater, o filósofo espanhol, levanta questões muito interessantes quando aborda a questão da ética e da empatia recorrendo ao livro “Robinson Crusoe”, de Daniel Defoe: o que haveria favorecedor da empatia no primeiro encontro de Robinson com Sexta-Feira, ou mesmo antes, quando Robinson encontra a pegada do indígena e fica atónito? A sua vida depois do naufrágio e da chegada à ilha pretensamente deserta, até ali limitada pela sobrevivência e pelo relacionamento com o ambiente, passou a ter uma outra dimensão. Mas quando se encontram, o que têm em comum? Será que a sua vida volta a ser mais humana, no sentido em que vai ter de se relacionar com humanos? Robinson Crusoe era um nobre europeu, cristão, “branco”, culto; Sexta-Feira era um selvagem, praticava o canibalismo, adorava vários deuses e não sabia ler: a sua cultura vinha da tradição oral da tribo. A sua pele era escura. Sexta-Feira não sabia onde era Londres nem sequer que existiam outros lugares para lá daquela ilha. Seria possível alguma espécie de empatia entre os dois?
Com o desenrolar da história, Robinson e Sexta-Feira descobrem que há uma coisa que os une e que provavelmente é o cimento da humanidade: a linguagem, mesmo que a princípio impercetível no que respeita à linguagem falada, e os conceitos do bem e do mal, mesmo que não se rejam ambos pela mesma pauta. Acabarão amigos, desembarcarão em Lisboa e ainda terão ocasião de combater, juntos, algumas matilhas de lobos, ao atravessar os Pirenéus.
A empatia pode gerar sentimentos positivos porque, à exceção de meia dúzia de aberrações, as pessoas que fazem mal aos outros não sentem um particular gozo em fazê-lo, antes se consideram tristes e desamparadas, sós e maltratadas. Não estou a defender que os comportamentos não devam ter o merecido castigo, depois de analisados os factos, as atenuantes e as agravantes. Há muita gente que se sente não amada, posta de parte, ostracizada, tal como o monstro do dr. Frankenstein, que era, afinal, uma composição de partes humanas e que só fazia mal porque nunca tinha sido levado a fazer o bem, já que, pela sua monstruosidade física – a que apenas uma criança e um cego não ligavam -, todos o tinham apelidado de “mau” e repelido, atacado e renegado.
Talvez por isso seja tão difícil existir, tão difícil ser, tão difícil produzir frases e palavras que não sejam as meramente circunstanciais ou operativas. É por isso também que há que expressar os sentimentos de forma inequívoca. Há quanto tempo, leitor, não diz às pessoas que ama… que as ama? Há quanto tempo não telefona a um amigo só para lhe perguntar como se sente, ou dizer que sente a sua falta e que gosta dele, sem que tenha de vir uma qualquer justificação anexada?
A empatia tem de ser exercida com um enorme bom senso: obviamente, não podemos sofrer por tudo e por nada, massacrados por um imenso complexo de culpa herdado da moral judaico-cristã, mas temos de desenvolver uma voz da consciência que nos irmane aos outros pelos outros, libertando-nos do que nos diz respeito e respeitando o que lhes acontece, por eles.
Tudo dilemas terríveis mas que, enfim, são parte integrante da vida e das dúvidas inerentes à condição humana.
Pediatra
Escreve à terça-feira